Cem anos atrás, quando o mundo ainda procurava se reerguer da devastação humana e econômica causada pela combinação da Primeira Guerra Mundial com a pandemia de Gripe Espanhola, o número de pessoas que residiam em cidades com mais de 20 mil habitantes batia na marca dos 250 milhões de pessoas, ou o equivalente a cerca de 13% da população do planeta. Em 2020, segundo os dados mais recentes da Organização das Nações Unidas (ONU) as áreas urbanas já contabilizavam 4,4 bilhões de pessoas, ou 56,2% da população global. E a tendência é que o crescimento continue em ritmo acelerado, chegando a 68,4% dos habitantes do planeta no ano de 2050.
A acomodação de um contingente populacional dessas proporções nas cidades implica a formação de verdadeiros ecossistemas criados pelo homem, além de profundas alterações no meio ambiente. Nas últimas décadas, os pesquisadores da área de ecologia urbana vêm tentando entender melhor os efeitos desta urbanização intensa e acelerada, e a capacidade exibida por certas espécies para se adaptarem aos novos ecossistemas. Agora, uma iniciativa global de pesquisa, que contou com a participação de pesquisadores da Unesp, concluíu que o processo de urbanização está impulsionando a evolução de uma espécie de planta.
Embora não seja uma novidade o fato de que a transformação humana sobre os ambientes esteja alterando de forma drástica os ecossistemas, o artigo publicado nesta quinta-feira na revista Science traz evidências de que a ação humana e o ambiente urbano estão orientando a evolução de plantas de forma semelhante e em escala mundial.
Vinculado à Universidade de Toronto, no Canadá, o projeto Global Urban Evolution Project (GLUE), é o maior esforço de pesquisa global já realizado sobre adaptação à urbanização e evolução paralela. A iniciativa compreende uma rede de quase 300 cientistas em 26 países e 160 cidades. No Brasil, participaram do GLUE docentes da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e da Unesp.
“O fato de que uma planta responde evolutivamente às mudanças do ambiente urbano é algo muito mais intenso do que verificar, por exemplo, um efeito em determinado contexto, como a produção de um fruto ou a germinação precoce”, diz Milton Ribeiro, docente do câmpus da Unesp em Rio Claro, um dos pesquisadores envolvidos no projeto. “Uma reflexão que pode ser feita a partir desse artigo é que embora o processo de urbanização seja relativamente recente, se comparado à história evolutiva, podemos constatar que as espécies já estão se adaptando. É um tempo curto, mas já estamos medindo as consequências que levariam talvez milhões de anos para se processarem” em outras circunstâncias, diz ele.
Ribeiro explica que o convite para ingressarem no projeto se deveu à expertise dos pesquisadores do Laboratório de Ecologia Espacial e Conservação (LEEC), que ele coordena, na área de ecologia. Integrante do grupo de pesquisa do câmpus de Rio Claro e coautor do artigo, o pós-doutorando João Carlos Pena foi o responsável por liderar os trabalhos junto à rede baseada no Canadá.
Uma planta globalizada
Para analisar a influência da urbanização sobre o processo evolutivo de um organismo, os pesquisadores usaram como modelo uma planta conhecida como trevo-branco (Trifolium repens). Essa espécie tem entre suas características o fato de ser uma planta cosmopolita, isto é, encontrada em praticamente todas as regiões do globo, em especial em zonas temperadas. Tal atributo é importante porque permitiu ao grupo de pesquisadores comparar os efeitos da urbanização em diferentes cidades e sob perfis climáticos diversos.
Outra característica importante do trevo-branco é a produção do cianeto de hidrogênio (HCN). Estudos anteriores apontam que a produção da substância está ligada tanto a uma estratégia de proteção da planta contra possíveis predadores quanto ao aumento da sua resistência ao estresse hídrico. A substância foi a “pista” usada pelos cientistas para avaliar os efeitos da urbanização sobre ela.
Do urbano para o rural
Em cada uma das 160 cidades, os pesquisadores recolheram amostras do trevo-branco ao longo de trechos que partiam do centro da mancha urbana até a sua área rural. As amostras foram enviadas para o Canadá, onde a produção de HCN foi medida em comparação com as características ambientais dos trechos urbano-rural de cada cidade. Além disso, também foram realizadas análises genéticas de populações do trevo-branco coletadas em 26 cidades.
Os resultados mostraram que em 47% das cidades analisadas foi identificada uma variação na quantidade de HCN nas amostras colhidas entre o trecho urbano-rural. Destas, em 39% das cidades, a produção foi maior em populações rurais. Apenas em 8% dos casos as populações urbanas da planta produziram mais HCN.
João Pena explica que a influência da urbanização na indução da evolução do trevo-branco está intimamente ligada às características do meio urbano. Segundo o pesquisador, que também desenvolve um projeto de pesquisa com bolsa da Fapesp na área de ecologia urbana, em uma cidade com boa quantidade de áreas verdes, a produção de HCN pelos trevos-brancos é maior na zona rural. “Isso acontece porque essa produção está associada a maior presença de animais herbívoros, o que leva a planta a investir mais nas suas estratégias de defesa”, aponta o pesquisador. “Por outro lado, quando existe uma quantidade menor de vegetação, o estresse hídrico se torna um fator mais importante. Nessas cidades, o trevo produz mais cianeto na parte urbana”. João Pena realizou suas coletas na cidade de Curitiba, onde não foi identificada variação na taxa de HCN.
Do ponto de vista das cidades, o levantamento realizado pelos pesquisadores do projeto constatou que as condições ambientais nas áreas urbanas tendem a apresentar mais semelhanças entre si do que os seus arredores de perfil rural. De certa forma, é como se o ser humano estivesse reproduzindo o seu “ecossistema urbano” em diversas partes do mundo.
Embora o modelo do projeto tenha sido uma planta cosmopolita e muito bem adaptada ao ambiente urbano, a reflexão deve ser levada para outras espécies. “Imagine o que acontece com espécies mais sensíveis às mudanças climáticas, à perda de floresta ou à concentração de gases de efeito estufa?”, questiona Milton Ribeiro. “O Brasil é um dos países que mais contribuem para a produção científica relacionada à vida na Terra. Isso não quer dizer que tenhamos paisagens mais sustentáveis, mas sim que estamos medindo as consequências negativas”, afirma. “Isso é muito pouco. Precisamos incorporar esse conhecimento na gestão de forma efetiva”.
Para João Pena, essa incorporação passa pela ideia de que as cidades precisam ser vistas como um espaço de oportunidades e não como ambientes prejudiciais. “Temos que tentar entender como o processo de expansão urbana está afetando a biodiversidade e como isso afeta processos ecológicos que também são importantes para nós. Afinal, somos espécies urbanas e não vamos conseguir fugir das cidades”, diz.
Por Marcos do Amaral Jorge/Jornal da Unesp / Foto: Divulgação