O tempo vai passando e, sem perceber, vamos sendo feitos de lembranças. E saudades. E memórias. Saudades da gente mesmo, dos pedaços de nós que vão ficando pelo caminho.
Me lembro daquela visita, como se fosse hoje. Um dos dias mais importantes da minha formação, que seria um marco em meu amor pelos livros, ainda guarda um lugar especial de minha memória.
Tão vivas estão em minhas retinas as imagens dos originais de Grande Sertão: Veredas, batido à máquina, com correções feitas à mão pelo próprio Guimarães Rosa. E o que dizer da certidão de batismo de um dos livros mais importantes de nossa literatura. Era apenas uma folha de rosto, que foi para aprovação do Graciliano Ramos, com o título “O Mundo Coberto de Penas”. Com traço firme, Graciliano riscou à caneta e mandou um recado anotado ali mesmo: “Caro editor, o novo título para o livro será “Vidas Secas”.
Também me chamou a atenção a coleção de cadernos escritos a mão por Érico Veríssimo, originais de O Tempo e o Vento.
Era 9 de abril de 1998. Depois de um convite irrecusável, feito por uma carta que guardo até hoje, fui a São Paulo para visitar o empresário José Mindlin, o maior bibliófilo que esse País já teve. Sua biblioteca pessoal hoje abrigada na USP, continha cerca de 35 mil exemplares na época!
Esse convite veio depois que eu descobri seu endereço e lhe enviei uma breve carta com meu artigo sobre a sua obra “Uma Vida entre Livros: Reencontros com o Tempo”.
Ele gostou tanto que me respondeu e me pediu que fosse conhecê-lo pessoalmente, e também à biblioteca.
Fui apreensivo e ao mesmo tempo com a expectativa de uma criança prestes a ganhar seu melhor brinquedo. E, como poucas vezes na vida, as expectativas foram em muito superadas.
Ver as primeiras edições de Os Sertões, revisadas pelo próprio Euclides da Cunha, ouvir suas histórias de buscas pelas raridades ao redor do mundo, primeiras edições autografadas de Machado de Assis, dedicatórias de Vinicius de Moraes, João Cabral, Carlos Drummond de Andrade, incunábulos, livros da época de Guttemberg, a biblioteca que um dia foi de Dom Pedro II, e muito mais, tiveram um efeito mágico em minha vida! Passear com Mindlin por entre as estantes conversando e percebendo sua emoção genuína em me mostrar suas preciosidades foi maravilhoso. Me fez entender o que Borges dizia sobre o Paraíso, que deve ser uma espécie de biblioteca.
Enquanto escrevia essa crônica, em livre-associação de lembranças, abro de novo o seu livro, e leio a dedicatória, feita minutos antes de eu ir embora: “Caro Marcelo, vejo que não preciso lhe desejar uma vida entre livros porque você já foi conquistado por eles. Achei isso ótimo!”.
Voltei à casa de Mindlin onze anos depois para entrevistá-lo, junto com o saudoso Carlos Marques, outro amigo que compartilhava comigo o amor pelos livros. Foi uma tarde maravilhosa em sua companhia.
Hoje passados 23 anos daquela primeira visita, entendo finalmente a profundidade da dedicatória que o Drummond fez ao Mindlin quando ele levou seu primeiro livro, e o poeta mineiro já doente: “Caro Mindlin, você me trouxe este testemunho da minha mocidade. Ah! Porque não trouxe também a minha mocidade.”