No inglês existe uma expressão chamada “misleading”: o prefixo “mis” antes do gerúndio do verbo “lead” significa algo como “induzir a uma interpretação errada”. Trocando em miúdos, é uma informação enganosa. Toda vez que leio alguma matéria em que declarações de estrangeiros são citadas, busco a fonte original. Isso não é nada mais do que obrigação, penso. No entanto, se tornou quase que uma necessidade.
Ultimamente, tenho notado uma assustadora quantidade de notícias traduzidas de maneira errada — ou feitas de modo enviesado, com escolhas lexicais bastante questionáveis — na imprensa brasileira. Em alguns casos, toda uma elaboração de pensamento é reduzida a uma simples frase (o velho “tirar do contexto”). Há também o acréscimo de palavras ao original, algo que só pode se configurar intencional.
Alguns anos atrás, após uma derrota da equipe suíça na Copa Davis — o torneio de seleções do Tênis, com jogos em dupla e individual (simples) —, li a seguinte manchete: “Roger Federer humilha companheiro em entrevista”. Ofensivo. O texto citava Federer: “Wawrinka não fez sua melhor partida em simples. Foi uma vergonha porque por conta disso não pudemos pressionar [a seleção] os Estados Unidos”. Comentários de leitores: “É um arrogante!”, “Federer está em decadência”, bradavam os analistas de plantão.
Por gostar de Federer e saber como ele sempre agiu, fui procurar sua entrevista no site da ATP. Eis a declaração de Federer: “Foi uma pena que Stan não teve seu melhor desempenho no simples, porque não pudemos pressionar o [time dos] EUA”.
A palavra usada por Federer ao referir-se ao desempenho de Wawrinka foi “shame”. Essa palavra tem mais de um uso no inglês. Dentre eles, sim, está “vergonha”, bem como “culpa”. Mas também pode ser usada como “misfortune”, ou seja, pena, má sorte, azar. E ficou muito claro que foi esse o sentido empregado pelo ex-número 1 do mundo.
Algum tempo depois, outra notícia na mesma linha. Li em vários lugares o seguinte: “Morrissey diz que os Beatles lançaram apenas quatro músicas boas”. Em algumas páginas, a manchete era: “Morrissey questiona qualidade dos Beatles”. Considerei agressivo. Vi gente perguntando “quem é Morrissey?”. Por gostar dos Smiths e mais ainda dos Beatles, fui procurar a declaração do cantor.
Foi numa entrevista à “Billboard”. A pergunta da revista foi a seguinte: “Recentemente, o mundo da música celebrou o 50º aniversário da chegada dos Bealtes ao topo. Você foi influenciado diretamente, na música ou de outra maneira, pelos ‘Fab Four?’”. A resposta de Morrissey: “Acho que quatro músicas deles foram magníficas, e se uma banda pode te proporcionar quatro canções magníficas, creio que seja o suficiente. Mas não fui influenciado pelos Beatles”.
Duas perguntas: em que idioma “magnífico” é o mesmo que “bom”? Então quer dizer que Sidney Magal compôs canções magníficas? Porque “O meu sangue ferve por você” é uma música boa. Outra coisa: afirmar que não foi influenciado diretamente por alguém é o mesmo que questionar sua qualidade? Eu não considero ter sofrido alguma influência direta de Guimarães Rosa, mas o cara era bom!
Fiz um recorte de duas situações simples, pois foram as que me vieram à memória e demonstram claramente uma falta de cuidado e, muitas vezes, segundas intenções na reprodução de afirmações. Por isso, é necessário ter muita atenção toda vez que lermos que “franceses criticam brasileiros” ou que um “jornal argentino ironiza o Brasil”. É claro que sempre teremos exageros, mas se isso acontece livremente em editorias de esportes e cultura, o que imaginar de política e economia?!
Antes de apontar para algum problema com o inglês ou os idiomas em geral, creio se tratar de um problema chamado falta de bom senso. Aliás, eu acho que na imprensa brasileira há no máximo quatro veículos bons. Em resumo, é uma vergonha.