Na sua cada vez mais precária e ausente imaginação, na sua vontade quase inexistente de ser feliz, em domingos como aquele, o segundo de agosto, Thomas ainda se surpreendia sentado ao portão, esperando que o pai surgisse lá na rua 3 com seu automóvel recém comprado e subisse, pé embaixo, a avenida 36 em direção à casa onde moravam, a casa que lhes pertencia.
Com a mãe ao seu lado, Thomas sentia o coração acelerar. Não exatamente por causa do carro que sonhava dirigir um dia, quando aprendesse. Mas por causa de quem o dirigia. O pai. O pai de Thomas. Eis o cara. Provedor de tudo e protetor de todos. O sujeito que sabia se impor, apenas com sua presença. Ombros levantados, olhar manso e sério. Nunca o tinha visto de cabeça baixa. Estava sempre bem vestido, socialmente, mas com simplicidade e elegância. O terno azul, escuro e sóbrio, só vestia quando ia a São Paulo, prestar contas de seu trabalho como corretor de seguros em uma companhia bem conceituada. Nunca o vira contar piadas. Nunca o vira sorrir por sorrir, sem motivo. Não era de frequentar bares, mas tinha seus uísques, conhaques, licores e vermutes em lugar reservado e discreto. Em uma das gavetas da estante da sala, a qual só ele tinha acesso, guardava seu cachimbo e o pacote de fumo, que tinha um passarinho na embalagem azul e branca. O pai de Thomas escrevia bons versos e tinha uma prosa correta e criativa. E uma caligrafia admirável. Comprava livros, jornais e revistas, como quem compra pães e leite. Gastava sem preocupação no supermercado, todos os meses. Comprava em qualquer loja, seu nome tinha credibilidade. E suas folhas de cheque era sinônimo de pagamento à vista. Se era feliz, difícil dizê-lo.
Agora, no alto da experiência de seus 42 anos, Thomas, não poderia afirmar isso em relação ao pai. Mas, naqueles dias, acreditava que sim. O pai tinha tudo o que queria, quando quisesse. Nada lhe faltava, e nada deixava faltar à família, a esposa e três filhos. Mas, nisto se resume a felicidade?
Naqueles dias, Thomas acreditava que sim. Era o caçula de três irmãos, filho temporão. Vindo ao mundo como fruto de um acordo bem acordado e não cumprido. Dê-me mais um filho e me afasto do futebol, palavras de seu pai. A mãe acreditou na promessa. Não deveria. No segundo aniversário, o pai dera uma bola de presente ao filho, e depois do primeiro chute…
Thomas não tinha os olhos castanhos da mãe e nem os cabelos pretos do pai e segundo sua amiga Rosana, bióloga de prestígio, a chance de Thomas nascer loiro de olhos azuis era mínima. Pois o milagre se deu. O garoto adquiriu por afinidade o mesmo gosto do pai, por cinema, literatura e futebol. E da mãe, adquirira o dom da persistência.
Naqueles dias felizes de Thomas Adler, o pai certa vez lhe dissera: Prepare-se. Sua mãe morre em menos de 2 anos. Não sabia mensurar com apenas 9 de idade, se 2 anos era muito ou pouco. Nunca tivera facilidade com números e sempre lhe faltara a devida atenção e entendimento para com as coisas importantes da vida. Mas a palavra morte instalou-se na sua mente e no seu coração para nunca mais abandoná-lo. Até que um dia, transformara-se em perda. Quando entrou no quarto do hospital para despedir-se da mãe, encontrou o pai. Saber como ele estava era a sua maior preocupação. A mãe estava nos braços de Deus. Era o que a fé cega e imposta havia lhe ensinado. E isso o confortava naquele momento, de certo modo. Nunca vira a mãe tão bonita como naquele instante. Uma luz envolvia seu rosto e era como se todo o seu corpo, tão doente, tão maltratado por tantos anos de sofrimento, tantos remédios e tratamentos inúteis, estava como que, por milagre, curado e são. E isso o confortara. Dera-lhe a certeza de que Deus, de fato, existe. Embora, seja um tanto exigente. Sempre pede algo em troca. Mas, e o pai? Motivo de sua maior preocupação. O pai estava a um canto, calado, encolhido, cabisbaixo. Nem parecia o pai. Esperou dele um olhar que não veio. Achou que seria melhor deixar o pai lidar com sua própria dor.
Vinte anos depois, estava em um leito de hospital diante do pai. Tocava seu rosto com carinho, segurava um pouco sua mão e lhe agradecia. Pode ir tranquilo, pai. Você fez o seu melhor. Cumpriu sua missão. Nós ficaremos bem. A tarde já se despedia. Chegava sorrateira a noite. E dava sinais de que demoraria a passar.
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Imagem ilustrativa
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