O que para a atual geração pode parecer uma lenda urbana na realidade é um fato. A primeira publicação de uma obra do cultuado “Príncipe dos Poetas Brasileiros” Guilherme de Almeida foi feita pelo “Diário do Rio Claro”.
A verificação de como se deu tal fato mostra o vínculo afetivo do poeta com Rio Claro e reaviva uma memória que valoriza tanto a cultura local quanto a imprensa do interior paulista.
Guilherme de Almeida viveu em Rio Claro dos cinco aos catorze anos quando com a família morou no casarão dos Azulejos Azuis que existia na esquina da Avenida Dois com a Rua Dois.
CONTEXTO
Duas circunstâncias garantem dificuldades para apuração do fato. A primeira é a falta de alcance aos exemplares do jornal do período entre 1904 e 1910 em que a obra foi publicada. A segunda é a ausência de testemunhos da época. Ao que se tem foi um soneto publicado na primeira página.
Por meio de uma edição também do próprio “Diário de Rio Claro”, no entanto, é possível alcançar esclarecimentos sobre o assunto.
Em sua edição de 26 de abril de 1939 o “Diário” reporta que a revista “Vamos Lêr” do Rio de Janeiro publicava naquela semana entrevista em que Guilherme de Almeida respondia com detalhes ao jornalista Silveira Peixoto sobre como acontecera a publicação do primeiro soneto. Ele diz que, ao ver o jornal, ficou chocado porque a publicação fora feita sem que ele soubesse.
UMA VERSÃO
Antes de conferir o conteúdo da entrevista à publicação do Rio de Janeiro, cabe rever a versão local com base nas crônicas de Oscar Penteado costumeiramente reproduzidas.
Segundo ele, o poema teria sido entregue pessoalmente por Guilherme de Almeida ao editor do “Diário”, David Teixeira, em 1904. A intenção era conseguir eventual avaliação e publicação. Daí se tem que o poeta morava na esquina da Avenida Dois com a Rua Dois.
Ao aprovar o pedido para publicação, o jornalista David teria dito “este menino vai longe”.
Guilherme de Almeida teria vindo para Rio Claro em 1895, quando tinha cinco anos de idade. Aqui teria vivido por quase dez anos. Teria catorze anos de idade quando o poema foi publicado e quinze anos quando a família mudou para São Paulo. Os números apresentados por Oscar Penteado têm poucas variações em relação às biografias consolidadas. Mas há diferenças.
Quanto a biografias, tem-se. Apesar de haver nascido em Campinas, Guilherme de Almeida foi batizado em Limeira, quando a família fugia da febre amarela que dizimava Campinas. Em Rio Claro ele fez os estudos básicos na escola de uma tia chamada Ana de Almeida Barbosa de Campos. Até aqui, não há alcance para saber que escola seria essa. Por volta dos catorze anos, ele seguiu para estudar em Campinas e depois em São Paulo. Por algum motivo chegou a morar em Araras quando ainda criança.
RELATO DO FATO
Na entrevista à publicação carioca Guilherme de Almeida conta que quando estudante tinha vergonha de mostrar o que escrevia. Ao traçar o perfil do entrevistado o jornalista destaca sua timidez. O que o poeta confirma ao dizer que escondia seus poemas.
Seu pudor, diz, começou a ser vencido quando divulgou entre colegas de turma o poema “Adeus”, em cartões que mandou imprimir para comemorar a formatura do colegial, em São Paulo.
Na sequência, ele fala do poema publicado pelo “Diário”. Não menciona data. Mas lembra de que estava em meio ao curso na Faculdade de Direito de São Paulo. O curso foi feito entre 1909 e 1912.
Guilherme de Almeida chega a detalhe irônico ao dizer que o soneto lhe fora “surrupiado” por David Teixeira, motivo porque tomou um choque ao saber que havia sido publicado. O que lhe valeu uma indignação momentânea. Elegante, evita a confidência de haver se sentido envaidecido e oferece em troca o humor da ironia.
Em entrevista, poeta fala sobre estreia
Quando o jornalista da revista “Vamos Lêr” lhe pergunta como se deu a publicação de seus primeiros versos, Guilherme de Almeida responde, integralmente:
– Foi um soneto, até hoje faz sucesso e anda por aí, em almanaques farmacêuticos. Deixe-me contar-lhe o caso desde o princípio. Eu era ainda estudante de Direito e trabalhava no escritório de meu pai, aqui em São Paulo. José David Teixeira, um dos jornalistas mais interessantes do interior paulista, fundador do “Diário do Rio Claro”, era íntimo de minha família. Um dia, no escritório, compus o soneto “Beijos”. Tinha chegado ao último verso, quando tive de sair apressadamente, para atender a um chamado urgente. Durante minha ausência, José David Teixeira apareceu e, com a intimidade que tinha começou a bisbilhotar. Deu com os versos ainda na máquina de escrever, onde eu os deixara. Não teve dúvida em surrupiá-los. Dias depois, enviava-me ele um exemplar do “Diário do Rio Claro”, com os “Beijos” estampados na primeira página, em meio a umas vinhetas…
Guilherme de Almeida prossegue quando o jornalista quer saber qual a “sensação que você teve” ao ver a publicação:
– De mudez. Fiquei indignado. Indignado e envergonhado. Apavorava-me a ideia de que todos iriam verificar, por aí, que eu fazia versos. Iriam talvez, comentar o soneto. Tive a impressão de que me colocavam em cima da capota de um automóvel e me exibiam, assim, como uma curiosidade, como um animal exótico, pelas ruas da cidade.
O poeta conclui, lembrando:
“O soneto começou desde logo, a ser transcrito e reproduzido em outros jornais e em toda uma série de almanaques”.
Ao que se nota, ele deixa transparecer sutil vaidade ao confirmar a perícia de David Teixeira no que foi a descoberta de um novo talento. Talento que se tornou clássico. Um clássico ungido pelo “Diário do Rio Claro”
Memórias
Considerado o “Príncipe dos Poetas Brasileiros” por eleição realizada pela imprensa, Guilherme de Almeida foi o primeiro modernista a fazer parte da Academia Brasileira de Letras, em 1930.
Presidente da Associação Paulista de Imprensa, foi redator de “O Estado de São Paulo” e diretor dos jornais “Folha da Manhã” e “Folha da Noite”.
Combatente da revolução paulista de 1932, foi preso e deportado para Portugal. Faleceu em 1969. Foi sepultado no Obelisco do Ibirapuera dos Heróis da Revolução. Deixou mais de 70 publicações.
AFETOS
Durante sua carreira, Guilherme de Almeida foi presença marcante nos cadernos de poesia de estudantes de todo o Brasil. Em Rio Claroele vinha à frente dos poetas preferidos pelos jovens, conforme aponta pesquisa sobre a cultura escolar da cidade entre 1928 e 1958 de Marilena Guedes de Camargo. A pesquisa aponta que o soneto “Beijos” fazia a cabeça da moçada. O “Diário” seguiu registrando o sucesso do poeta ao longo de sua trajetória.
O poeta era do círculo íntimo das lideranças modernistas, especialmente de Oswald de Andrade. Entre eles estava o rio-clarense Ferrignac, jornalista e caricaturista, advogado.
Por época da morte de Ferrignac, em 1958, Guilherme de Almeida publicou emotivo artigo no “Diário” sobre suas recordações da infância e adolescência em Rio Claro e da maturidade em São Paulo com o amigo que partia. Vale a pensa rever como foi aquela amizade e lembrar quem foi Ferrignac. Mas esta é uma outra história. Que fica para uma outra vez… Beijos!
Beijos
Não queres que eu te beije! E o beijo é a própria vida:
a invenção mais divina e humana do Senhor;
é o fogo em que se abrasa uma alma a outra alma unida;
é o prólogo e também o epílogo do amor!A lua beija o mar, nas ondas refletida;
o sol, beijando o céu, reveste-o de esplendor;
num beijo o orvalho alenta a planta emurchecida,
e a borboleta suga o mel beijando a flor. . .Deixa que o meu amor expanda os seus desejos
beijando os lábios teus sem nunca se fartar!
chega ao meu coração, escuta-lhe os latejos!A boca perfumada, ó deixa-me beijar!
Porque somente amando é que se trocam beijos
e porque beijando é que se aprende a amar!”
Publicação. Edição da revista Vamos Lêr! que traz entrevista com o poeta, na qual explica seu início na poesia brasileira.
Por José Roberto Sant’Anna