Sommelier de vacina: Você sabe com quem está falando?
►Temos mania de reclamar, reclamamos de tudo, culpamos tudo, e por fim, a culpa é, no final das contas do governo. Muitas das vezes, encontramos os reclamões berrando, gritando, hoje nas redes sociais… Os mesmos que como cordeiro se enfileiram nos gabinetes de vereadores, prefeitos ou secretários para pedir benefícios.
►A construção dessa subjetividade coletiva revela um traço perverso de nossa cultura, que vai além da cultura do jeitinho, da lei de Gerson, e revela, afinal, que padecemos de um problema crônico que impera, inclusive na política. Ou seja, para seu espanto, os políticos – tão criminalizados, por vezes com razão, são reflexo de uma sociedade que reclama do vizinho que não trabalha e fica o dia inteiro na calçada cuidando da vida dos outros, mas esconde que o reclamante ganhou auxílio emergencial sem ter direito.
►Essa síndrome ainda envolve a cultura do “Você sabe com quem está falando?”, que destrói a concepção de indivíduo e cria a figura da pessoa, em contraponto, por exemplo, à frase americana “você pensa que é quem?” Como bem cita GUATTARI (1996), “a análise que o Roberto da Matta faz dessa frase mostra o quanto a noção de indivíduo é pejorativa no Brasil. Pois o ‘“você sabe com quem está falando?’ revela o inverso do que diz a frase americana ‘quem você pensa que é?’ ou o enunciado francês ‘por quem você se toma?’. Nos dois últimos casos, a pergunta indica que a regra fundamental e a igualdade, que todos têm os mesmos direitos, e que, portanto, aquele que pensa que é superior deve abdicar de sua pretensão. No caso de ‘você sabe com quem está falando?’ cita-se o contrário: a frase coloca quem a usa numa posição superior, instaurando imediatamente a hierarquia e a desigualdade social. É que, no Brasil, a pessoa parece ser mais importante que o indivíduo, pois ser indivíduo é um estigma, é ser anônimo, é ser um “zé ninguém”.
►Logo, para retomar o título deste artigo, podemos facilmente entender os motivos que levam a pessoa (um cidadão) a escolher uma vacina “x” em detrimento a vacina “y”, um benefício egoísta que sintetiza o traço de um povo que continua utilizando o jargão do “você sabe com quem está falando?” ou melhor, no caso de Rio Claro, “Você sabe que sou parente/amigo/protegido” do “você sabe com quem está falando”?
►Antonio Archangelo é professor, pesquisador, gestor e escritor. Membro do Gesteld – Grupo de Estudos em Educação, Sexualidade, Tecnologias, Linguagens e Discursos (Unesp/CNPq) e do Grupo Temático de Monitoramento e Avaliação de Programas, Serviços, Sistemas e Políticas de Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)
Foto: Divulgação