Porque santo de casa não faz milagre, o senador Vergueiro é um anônimo na cidade que organizou e praticamente fundou. Rio Claro o desconhece. Não obstante, a história nacional sabe que ele chegou a assumir o governo do Império em 1831 e foi presidente do Conselho de Ministros de Pedro II, cargo equivalente ao de primeiro ministro. No município, não há qualquer espaço público que faça referência a seu nome.
Para conferir a biografia de um dos pioneiros da advocacia em São Paulo e introdutor do trabalho imigrante no Brasil é preciso ter fôlego. Esforço nesse sentido está devidamente cumprido no livro “Senador Vergueiro – Sua vida e sua época”, de Djalma Forjaz.
. A clássica obra traz em detalhes a trajetória de quem foi um dos mais influentes políticos da história do Brasil.
Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (1778/1859) foi um dos quatro primeiros advogados a se instalarem na cidade de São Paulo. Com formação em Coimbra, ele chegou ao Brasil em 1803 e logo era paulista influente. Além de juiz, foi diretor da Faculdade de Direito de São Paulo. Depois, tornou-se fazendeiro nacionalista e progressista de renome internacional.
Maneira simples e objetiva de avaliar a importância de Nicolau Vergueiro à sua época é lembrar que com outros dois líderes nacionais ele assumiu o governo do Império em 1831. Naquele ano Pedro I renunciou ao trono e seguiu para Portugal. Pedro II não tinha como assumir o reinado por ter apenas seis anos de idade. Coube à junta administrativa assumir o poder até se definir como o Brasil seria governado. A sequência dos fatos está nos livros.
Em sua trajetória política, o fundador de Rio Claro e Limeira foi vereador; membro do Governo Provisório de São Paulo em 1821; deputado estadual (provincial, nos termos da época); presidente da Assembleia Legislativa; deputado à Constituinte Portuguesa em 1822; deputado à Constituinte Brasileira em 1823; senador; ministro da Justiça e presidente do Conselho de Ministros de Pedro II.
Como fazendeiro nacionalista e progressista, tornou-se desbravador de sertões a partir de inicial instalação em Piracicaba com fazenda de açúcar. Logo ampliou sua influência pelo interior paulista. Ele projetou os traçados das cidades de Piracicaba, Limeira e Rio Claro. Instalou na região a lendária Ibicaba, uma das fazendas mais famosas do País. Em Rio Claro introduziu a cultura do café na fazenda Angélica. Foi o primeiro a investir na substituição da mão de obra escrava por imigrantes europeus assalariados.
Em São Paulo e outras cidades seu nome identifica ruas, bairros e mesmo instituições. Em RC a resistência em lembrá-lo pode ser explicada por conflitos durante a colonização alemã- suíça. A descendência daqueles imigrantes parece haver sido coesa o suficiente para rejeitar Vergueiro.
O fato remete a episódio de dimensões internacionais e muito explorado por historiadores brasileiros e europeus há mais de 150 anos. Nele, o senador desponta como vilão por maus-tratos e exploração dos primeiros imigrantes que para o Brasil vieram trabalhar em fazendas de café nas vizinhanças de Rio Claro e Limeira.
O projeto dessa migração objetivada em substituir a mão de obra escrava por trabalhadores assalariados nasceu por empreendimento de Vergueiro. Apesar de contar com financiamento público, foi um projeto da iniciativa privada. Na prática redundou em fracasso que retardou novas levas migratórias e, consequentemente, acabou justificando a manutenção da escravatura por mais trinta anos. O Brasil foi o último país do ocidente a acabar com a exploração de escravos.
Historiadores atuais têm sido mais complacentes com o senador. Análises menos apaixonadas sobre os acontecimentos fazem notar que, por época da polêmica crise entre suíços, alemães e seus patrões, registrada especialmente nas fazendas de Vergueiro, o senador tinha 80 anos de idade. Ele morreu no ano seguinte. A observação propõe que, por já estar velho e doente, seria pouco provável que o patriarca pudesse protagonizar a acalorada celeuma que ganhou manchetes nos jornais do mundo. Por essa visão, os algozes dos imigrantes, a certa revelia do senador, teriam sido seus filhos Luis e José. Estes, sim, impiedosos com os trabalhadores brancos, além de, antes, serem notórios traficantes de escravos.
Seja como for, os maus-tratos são fato comprovado. Os imigrantes eram descaradamente roubados em seus pagamentos, vítimas do expediente de serem obrigados à compra de víveres na fazenda a preços superiores ao de mercado e lesados por contabilidade fraudada que geravam dívidas impagáveis.
As dívidas incluíam descontos superfaturados a título de pagamento de passagens e demais despesas com a imigração. Ao invés de receberem salários, os trabalhadores tornavam-se eternos devedores, enquanto eram impedidos por lei de deixarem o local de trabalho sem prévia – e impossível – quitação.
As correspondências denunciando tais crimes aos governantes brasileiros e às autoridades dos países de origem eram invariavelmente destruídas. Até que diplomatas suíços tomaram conhecimento do caso em visitas a fazendas da região e a farsa acabou denunciada, gerando um incidente internacional, para vexame de dom Pedro II, cujo relacionamento com Vergueiro já não era dos melhores. O senador terminou seus dias no ostracismo político.
Até a fritura política, Vergueiro cumpriu trajetória ímpar, o que contribui para relativizar a difamação a que foi submetido. A má conduta a ele atribuída sugere algo característico de inexperiência tanto política, quanto administrativa, elementos incongruentes a seu histórico pessoal, mas alinháveis à impetuosidade e displicência de seus filhos.
Outro motivo que implicou em certo ostracismo de Vergueiro foi seu envolvimento em 1842 na malfadada Revolução Liberal que chegou a pretender destituir Pedro II do trono, mas apenas conseguiu tumultuar Limeira e Rio Claro,focos da rebelião. Daí, as suspeitas subsequentes do imperador em relação a ele.
Existem provas testemunhais contra a família Vergueiro. Apaixonadas e parciais, mas existem. Acontece que entre os imigrantes instalados na fazenda Ibicaba, em Cordeirópolis, esteve o legendário e heroico Thomaz Davats. Ele chegou ao Brasil em 1856 junto a outros 270 suíços e alemães que foram distribuídos entre as 14 colônias de café da região.
Por ser alfabetizado, Davatz ficara incumbido de enviar relatórios sobre as condições de trabalho nas fazendas para o governo de seu país. Se inicialmente foi cortejado para produzir relatórios favoráveis à administração da fazenda, logo passou a sofrer ameaças, à medida que se mantinha no propósito de denunciar o tratamento a que os europeus viam-se submetidos. Sob acirrada censura, sua correspondência deixava de chegar aos destinatários. Sem se deixar abater, ao final ele conseguiu sucesso em algumas das mensagens, pedindo socorro diplomático.
Naquele final de 1856, os imigrantes promoveram greves nas fazendas. O clima entre as partes tornou-se de extrema tensão. Por pouco não houve mortes. A crise exigiu intervenção do governo. Em março do ano seguinte, os ânimos se amenizaram. Acordo entre as partes previa que Davats, considerado líder do movimento, deixasse o País.
No dia 10, em cena dramática, ele se despedia dos companheiros e deixava Ibicaba. Seguiu para o Rio, onde foi recebido como herói. Daí seguiu para a Europa. Seus relatórios e diário de viagem tornaram-se um livro que causou escândalo internacional. O projeto de imigração foi engavetado. Pedro II preferia imigração para pequenas propriedades no sul do País. Os trabalhadores que aqui permaneceram conseguiram libertar-se aos poucos das grandes fazendas, tornaram-se proprietários rurais ou seguiram para a vida urbana.
Análise da sequência desses episódios estima que os conflitos vividos justificaram-se por questão cultural. O projeto de contratar trabalhadores europeus fracassou por causa da mentalidade escrava do País. Com poder de vida e morte sobre os escravos, os fazendeiros não dispunham da capacidade de relacionamento com europeus que já conheciam direitos trabalhistas, de cidadania e humanos.
Os barões do café, às vezes com menor instrução que os imigrantes, entendiam como afronta a ideia de respeitar direitos humanos e ter suas relações com os empregados reguladas por princípios legais, morais ou éticos. Eles só entendiam de convivência com escravos sem nenhum direito. Por outro lado, muitos dos imigrantes contratados eram inaptos para o trabalho por terem origem urbana. Na onda migratória, também se avalia, atualmente, que os governos europeus teriam enviado para o Brasil pessoas moralmente desqualificadas, entre velhos, doentes e até aleijados.
Os detalhes do episódio podem ser conferidos em “Memórias de Um Colono no Brasil”, de Thomaz Davats, com prefácio de Sérgio Buarque de Holanda.
O caso de Vergueiro remete ao debate se a memória pública deve ser submetida a expurgos moralistas. Ou seja, se a galeria de ilustres de uma comunidade deve incluir apenas figuras politicamente corretas conforme os valores de uma época.
Situação exemplar de revisão moralista Rio Claro viveu em relação à memória de Dalva de Oliveira. Por décadas a tradição local minimizou a importância da cantora sob alegada questão moral, disposição recentemente revista a partir da mudança de costumes. Hoje, Dalva de Oliveira é reconhecida como ilustre pelas atuais gerações de rio-clarenses.
É certo que o contribuinte não pode ser obrigado a sustentar cultos cívicos a detratores de seus antepassados. No entanto, pode-se considerar que expurgos favorecem a hipocrisia antes de combatê-la.
Ao promover uma memória seletiva, a tradição elimina os recursos da contradição como instrumento para estudo da história. De fato, não cabe ao poder público estimular cultos de personalidade, que sempre são parciais. Mas cabe, sim, disponibilizar a integridade da memória social como possibilidade de entendimento do presente por meio do passado. Portanto, o expurgo moralista é lesivo ao interesse público.
Por J.R.Sant´Ana / Foto: Divulgação