Os livros que me interessam, são os livros que eu escrevo, havia anotado num pedaço de papel qualquer o Sr. Thomas Adler. Naquele 10 de fevereiro, completava 65 anos. E desde que se conhecera por gente alfabetizada, havia tentado de tudo. Desde Shakespeare até Sidney Sheldon. Mas nada o havia convencido a entregar-se àquele mesmo ritual sagrado de seus pais: a leitura.
Ficava impressionado, cada vez que se lembrava de que a mãe havia lido a coleção completa de “Os Imortais da Literatura Universal”, publicado pela editora Abril há 50 anos. Livros bonitos, bem editados, de capa dura vermelha com as letras do título e do autor grafadas em filetes dourados. Uma beleza! Fora isso que o convencera de que os livros devem ser antes de mais nada, objetos capazes de despertar o interesse das pessoas.
Mas embora tenha tentado muitas vezes, nunca fora além de meia dúzia de páginas daqueles livros que tanto admirava em sua importância histórica e em seu aspecto visual. Aos seus olhos, eram tão excitantes quanto o bolo de cenoura que a doceira Alzira lhe fazia sob encomenda aos finais de semana ou o cabelo curto e muito sexy da secretária de seu dentista, algo que o fazia vencer o medo horripilante que tinha daquele desprezível torturador vestido de branco ao qual se submetia a cada dois meses, mais por excesso de zelo e tendência ao masoquismo do que por necessidade.
Naquela tarde, o Sr. Thomas Adler tentava escrever um conto que falasse sobre o seu bom e estimado amigo o Irmão Giovanni. Mas, as lembranças daquela relação de amizade tão forte, tão bonita e tão sincera, agora estavam resumidas às poucas vezes que ia até à praça Santa Cruz para observar de perto o busto em que estava eternizada a memória do amigo.
Essas lembranças agora tolhiam-lhe a atenção e, a mente, distraída, então divagava e ia se perder na frase do poema de Herberto, que guardava num canto especial de seu coração: Essa criança que aperta as veias que iluminam a minha garganta. Ela dorme. Escuta:
Eh, minha vida! – disse a si mesmo, com lágrimas nos olhos, enquanto apontava o lápis com a gilete. Não havia encontrado ainda a primeira frase, a mais verdadeira possível, para iniciar o conto. Então, dando-se por vencido, deixou o conto de lado, para melhor conter as lágrimas que, em maior profusão, lhe escorriam pela face, alcançando o papel onde escrevia.
Conhecer os versos de Herberto e de Pessoa mudaram completamente sua vida. O levara a vencer a repugnância pelos livros clássicos. E fizera aumentar ainda mais o amor já muito grande e muito forte pela terra distante de seus antepassados maternos, cujo nome trazia escondido na objetividade dos dias atuais: Thomas Adler Menino da Costa. Filho de Hans Adler e Antonieta. Isso lhe dava um orgulho besta que não sabia explicar.
Ocupou-se novamente da xícara onde havia um resto de café que fizera naquela tarde, por não ter coisa melhor e mais digna a fazer. Perdeu-se por um momento, ou dois, diante da estante de livros que um dia fora de seu pai. Abrira a repartição da estante onde o pai guardava as bebidas curtas, o fumo e os licores que a mãe fazia com muito gosto e carinho. Sentiu-se inebriado por aquele cheiro de bebida adocicada que conhecia tão bem. E fora como se pudesse novamente sentir a presença do pai, como se pudesse vê-lo novamente, sentado na poltrona da sala, tarde da noite, ouvindo o noturno de Chopin, enquanto apreciava comedidamente, como sempre, uma dose bem generosa de seu indispensável Balantine’s 12 anos.
O pai, a preparar com método e cuidado extremado o fumo no cachimbo que, depois, em um ritual solene, acendia, ainda ouvindo Chopin. A cortina da sala, meio aberta, o gato estirado no tapete, a observar com fidalga indiferença os acontecimentos inoportunos dos humanos em seu redor. A brisa da noite, a entrar pelas frestas da cortina e pela porta da sala, que dava acesso ao jardim bonito e enfeitado da casa; a brisa da noite, calma e delicada, a envolver o ambiente por completo. O silêncio noite adentro. O pai, ainda sentado na poltrona, olhos vagos, dispersos, longe, e Chopin, agora, emudecido.
Thomas Adler piscou os olhos e voltou à realidade. Olhou para a folha em branco diante de si e para o lápis apontado ao alcance da mão. Quase convenceu-se a tomá-lo de novo, ciente de que já tinha motivo suficiente para escrever o conto que pretendia, ao menos começá-lo. Mas, tinha dúvidas, de que seria capaz de fazê-lo novamente. Afinal, já fazia tanto tempo da última vez e tudo agora era tão diferente.
Sentiu de súbito um ligeiro incômodo que, queria acreditar fosse passageiro. Um certo desprezo por si mesmo e por tudo à sua volta de repente experimentou, como se nem mesmo aquilo que escrevia ou pudesse escrever não lhe interessasse mais.
Levantou-se não sem antes solver o último gole de café que havia no fundo da xícara, e foi para a rua, com a mesma esperança de quando tinha 17, 18, 19 anos, a esperança de que, ao acaso, a vida, por um instante, pudesse surpreendê-lo e motivá-lo novamente a não desistir. Não agora, que tudo parecia tão perto e tão alcance de suas mãos.
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Istock Kristina Jovanovic