O café esfriava sobre a mesa. Havia sido colocado naquela xícara que fora presente de sua mãe. Aparício Pitangueira era um contador aposentado. Aos 70 anos, bem vividos, dedicava-se a retribuir à vida o que ela lhe dera em abundância: amor e paz. Fazia-o ocupando-se de trabalhos voluntários. Exercia o modesto cargo de 2º tesoureiro em uma associação beneficente espírita, que, uma vez a cada 2 meses, realizava um mega bazar de roupas e objetos com objetivo de angariar recursos para a subsistência da entidade, uma vez que essa vivia do apoio de seus dirigentes, colaboradores e pessoas abnegadas que reconheciam a importância de entidades como aquela, que tem por objetivo amenizar ao menos um pouco o sofrimento das pessoas menos assistidas pela sorte.
Ciente da lei de causa e efeito que rege o universo como um todo e do ensinamento, dos mais importantes, de Jesus Cristo, que diz: “a semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória”, naturalmente que o Sr. Aparício Pitangueira sabia que ninguém neste mundo sofre por acaso, por capricho dos deuses ou por esquecimento da Divindade. Ou seja, ninguém paga o que não deve. Porém, esse pagamento, não deve ser necessariamente com lágrimas e dores. Mas, sim, com amor. Afinal, houve alguém, que Aparício prezava muito e chegara a conhecer inclusive pessoalmente, que dizia: “Todo bem que fazemos hoje, será nosso advogado, em qualquer tempo e por toda parte”. O nome do autor desta frase, Chico Xavier, considerado por muitos como o maior brasileiro de todos os tempos. E bem antes de Chico, o Pedrão, dono das chaves do céu e das chuvas como querem alguns, o apóstolo mais humano do Cristo, já dizia: “Sim, meus filhinhos, o amor cobre a multidão de pecados”. Que consoladora foram essas palavras na vida de Aparício, quando, por volta de 50 anos de idade, perdera um filho muito querido, bom menino, então, com 17, para o vício das drogas e suas nefastas, consequências.
Naquela manhã, Aparício voltara do passeio matinal, antes de se debruçar sobre a documentação contábil da associação beneficente espírita Caminho de Jesus, para se dedicar à elaboração do balancete financeiro mensal. Verificaria, como de hábito, toda a documentação, as notas fiscais, recibos, entradas e saídas do mês, as colaborações espontâneas em espécie que a entidade recebia em forma de doação, os extratos bancários, enfim, a rotina toda. Seu amigo Afonso, estava presente. E, diante do silêncio de Aparício resolvera se manter calado, até então.
“O que tanto o incomoda, Aparício?” – resolvera arriscar Afonso, esperando com isso, tirar o amigo daquele distanciamento voluntário e preocupante.
“Nada não, Afonso. Nada em especial. É que tenho avaliado as palestras que tenho assistido ultimamente nas casas espíritas. Vejo citações de personagens históricos e passagens evangélicas, com invejável exatidão. Vejo eloquência e método para cativar a atenção do público. Tudo isso muito admirável, devo admitir, e digno de elogios, porque reflete o esforço de quem se ocupa da tarefa…” – e fez uma pausa repentina.
“Porém…?” – indagou o amigo.
“Exato, Afonso. Porém, estou propenso a considerar que toda a problemática da sociedade humana, se deve à falta de entendimento de questões fundamentais:
1 – A pré-existência do espírito, o ser individual, sensível, pensante, que somos cada um de nós, capaz de agir conforme seu conhecimento adquirido e as possibilidades do momento, dentre as quais se inclui, o merecimento e a necessidade. Não satisfaz a razão considerar os efeitos sem conhecer as causas. Logo, se não encontramos justificativa para o sofrimento do espírito humano no presente, ele necessariamente deve estar no passado;
2 – A imortalidade do espírito, eis a outra questão. Porque à luz da razão, se me parece tolice a possibilidade de que Deus tenha feito algo tão complexo, tão importante, tão bonito como o espírito humano para que este não tivesse continuidade ao infinito;
3 – A pluralidade das existências do espírito. Ou seja, é bem mais reconfortante e satisfaz mais a razão, considerar que a vida espiritual é uma só, porém, a vida humana, pode ser muitas e nunca se repete, de modo que os corpos físicos que abrigam a vida do espírito humano, nunca se repetem. São criados, cumprem sua função e são desfeitos e reassimilados pelas forças da natureza. Alguém já disse: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. E de onde vem o corpo humano, senão da natureza?”
Afonso ouvia atentamente as colocações de Aparício.
“O que lhe parece tudo isso, Afonso?”
“Se me permite, devo admitir que são questões empolgantes e razoáveis, e merecem atenção.”
“Como católico convicto você me surpreende”.
“E que outra resposta esperaria de um homem racional?”
“Pois é, meu caro amigo. Mas, as pessoas tem muitas dificuldades para enxergarem e entenderem o óbvio”.
“E por quais motivos?”
“Muitos. Medo, comodismo, hábito, distração…”
“Compreende-se, levando-se em conta o mundo em que vivemos”.
“O mundo, Afonso, é resultado das escolhas e das ações humanas”.
“E onde entra Deus nisso tudo, Aparício?”
“Já entrou. Quando, por amor, nos fez viver. E tudo criou”.
“Vamos ao café, antes que esfrie” – disse Afonso, sentindo-se incomodado.
“Ajude-me com esses papéis, amigo – disse Aparício – Ajude-me a colocá-los em ordem de data, por favor”.
Em dado momento, interromperam o trabalho, para um outro gole de café. O jornal Diário, que chegava logo cedinho, já estava sobre a mesa. Havia sido trazido pela sempre atenciosa e eficiente Ismênia, a diarista que prestava serviços há muitos anos naquela casa de família, que agora resumia-se a Aparício, seu gato soneca e, aos amigos, eventualmente, quando estes vinham visita-lo. Apesar de ser outono, a manhã era bem quente, naquela terça-feira.
“Sabe Afonso – disse Aparício – deixe-me lhe confidenciar mais uma de minhas reflexões”:
“Pois não, amigo. Fique à vontade. Sou todo ouvidos”.
“Veja, Afonso. Até o momento, em face à problemática que lhe expus, agora há pouco, somente o Espiritismo, entre as religiões, se debruça sobre esses temas fundamentais. E o faz à luz da razão. Sem os vícios e os equívocos, compreensíveis, mas, não aceitáveis, das religiões tradicionais. E, a meu ver, a chave para este entendimento está no ensino moral de Jesus, que nos traz todas as respostas para as necessidades do espírito humano. Mas não pode ser considerado ao pé da letra, este ensino moral de Jesus, como tem sido ao longo dos séculos. O que me diz”?
“É uma possibilidade, sem dúvida, meu amigo. E prometo que vou pensar a respeito”.
“Nos vemos logo mais à noite, Afonso, no Caminho de Jesus?”
“Talvez. Dê-me um espaço de tempo para pensar em tudo o que você me disse hoje”.
O amigo se despediu e voltou aos seus afazeres contábeis. Afonso era um amigo muito estimado. Um irmão na verdadeira acepção da palavra. Eles haviam ingressado juntos na mesma Loja e chegado, depois de muito trabalho e esforço à condição de aprendizes. Aparício sentia-se mais confortável nessa condição. E outra coisa não se considerava senão isso, um aprendiz. Aparício e Afonso, dois bons amigos pensavam diferente e divergiam sobre muitas coisas, mas, se gostavam e se respeitavam. Porque acreditavam em Deus acima de tudo, no amor de Deus, o grande artífice universal, a fonte inesgotável de amor, ternura e bondade. E misericórdia. E acreditavam na proposta de vida e nos ensinamentos de Jesus Cristo.
Ao se despedir de Afonso, já no portão de sua casa, Aparício lembrara-se ao acaso da frase que encontrara em um dos romances mais admirados de seu escritor favorito. Aquela frase lhe marcara profundamente e fora a base fundamental da sua vida de relação com seus amigos. Dizia a frase, na verdade, um diálogo: “E na guerra importa quem está ao seu lado? Sim, mais do que a própria guerra”.
Quando Aparício voltou para a sala a fim de retomar seu trabalho, percebeu que o seu gato soneca já havia acordado e resolvera ajudá-lo com os documentos contábeis. Mui amigo!
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Imagem ilustrativa/Reprodução