“Tem certeza, madame?”
“Tenho. Tenho, sim. A mais absoluta certeza. Como jamais tive qualquer outra em toda a minha vida”.
“Pois não. Devo, então, chamar o chofer?”
“Já deveria tê-lo feito”.
“Queira me desculpar, madame. Irei fazê-lo imediatamente. Com sua licença”.
O criado, o mais antigo da casa, estava acostumado com aquelas reprimendas, que nem sentiu-se ofendido. Retirou-se da presença da patroa e desceu rapidamente as escadarias, a fim de avisar o motorista que deveria preparar o carro o mais rápido possível.
No quarto, madame ainda permanecera, o olhar escapando pela janela aberta, perdido em direção ao nada. Sempre soubera que aquele momento chegaria. Há cerca de um ano vivera situação semelhante. Mas naquela oportunidade cedera aos argumentos que normalmente convencem as pessoas civilizadas a resistir com bravura e alguma dignidade, as loucuras da vida por vezes necessárias.
Pesou a honra, o nome, o dinheiro, as aparências. Mas agora não. Tudo isso se esvazia de valor, eram apenas palavras ocas, sem vida e comuns na boca de pessoas inocentes e imbuídas de boa-fé.
Estava a deixar aquela casa, sem saber ao certo para onde iria. Talvez um hotel, retirado do centro da cidade. Um lugar discreto onde não poderia ser facilmente reconhecida. E melhor seria se fosse além de discreto, bom e barato.
De repente, essas coisas tidas como tolices até bem pouco tempo, haviam adquirido uma tremenda importância. Afinal, saía vez por todas daquela casa, nas mesmíssimas condições em que entrara, ou seja, desprovida de recursos, a palavra elegante quando pessoas educadas evitam mencionar dinheiro.
Madame continuava olhando para o nada, através da janela. Sentia inevitavelmente um vazio, um sentimento de ausência que poderia perfeitamente ser tomado como agonia que, noutras oportunidades, já teria lhe provocado tremor, náusea e palpitação. Mas agora, de fato, tudo que sentia era um vazio, imenso e inofensivo.
“Decisões devem ser tomadas – dizia-lhe o pai, quando ainda bem jovenzinha – ou a vida não se modifica”. Nunca recorrera tanto a esse oportuno ensinamento do pai, como naqueles últimos dias.
“Decisões acarretam consequências – dizia-lhe o marido, que estava prestes a deixar – E você, querida, certamente não está, porque nunca esteve, preparada para lidar com elas”.
Não estava mesmo. Mas, naquele momento, isso era o de menor importância. Importante, era deixar nascer, enfim, das entranhas da sua alma oprimida, a esperança de que ao sair daquela casa, e abandonar aquela vida, pudesse ser feliz.
A noite já cobria o céu com seu manto negro, quando começara a chover. Fechou as janelas antes de deixar o quarto. Lá embaixo, seus pertences, poucos, eram colocados no porta-malas do carro pelo sempre atencioso e eficiente motorista. Os criados haviam abdicado da oportunidade de se despedirem dela. Na verdade, estavam era muito satisfeitos por se verem livres da patroa.
Ela entrou no carro, e antes que este se colocasse em movimento, fechou os olhos e os manteve assim por algum tempo. Um tempo em que sua respiração permaneceu em suspensa e a vida, em silêncio, ganhara contornos de eternidade. Pode sentir com alívio uma lufada de vento que entrara pela janela da porta de trás do automóvel, como que acarinhando-lhe o rosto.
O carro agora seguia lentamente no rumo do portão e ela sorria satisfeita porque era a última vez que o atrito dos cascalhos com os pneus iria irritá-la. E antes que o automóvel passasse finalmente pelo grande portão e ganhasse a rua, ela arriscou um olhar para trás, como que a saudar a sua vitória.
Mas então nesse instante, viu a silhueta de um homem já se confundindo com a penumbra da noite, apoiado numa bengala, enquanto segurava uma garrafa com a outra mão. Por um instante, ela pensou que iria ceder novamente, fez menção para que o motorista parasse o carro. Mas a sua vontade de ser feliz, enfim, prevalecera.