Pablo Nogueira/Jornal da Unesp
Hoje, quem percorrer a pé a região que separa os municípios de Rio Claro e Piracicaba vai atravessar córregos, descampados e trechos de mata e de cerrado. Porém, alguém que se aventurasse a fazer a mesma jornada 140 milhões de anos atrás veria-se caminhando em meio às dunas de areia de um verdadeiro deserto. À época, o terreno que hoje compreende o Estado de São Paulo integrava o supercontinente conhecido como Gondwana, que começava a se desfazer. Em meio a essas dunas, seria possível enxergar ao longe várias lagoas de pequeno e médio porte, formadas pela ação das chuvas sobre o lençol freático. A sensação geral do caminhante seria a de estar percorrendo uma paisagem muito semelhante à dos atuais Lençóis Maranhenses, celebrados como um dos mais belos cenários do nosso país. E mais: se descesse até essas lagoas, nosso viajante teria boas chances de vislumbrar manadas de dinossauros, que caminhavam em meio à água enquanto saciavam a sede — e, de quebra, inscreviam, com seus passos, suas assinaturas pessoais na história geológica de nosso planeta.
Os remanescentes dessas pegadas deixadas pelos dinos no fundo daquelas lagoas ancestrais chegaram até nós na forma de um fenômeno conhecido como dinoturbação. Graças ao estudo destes vestígios, uma equipe de geólogos e paleontólogos que inclui diversos colaboradores da Unesp está conseguindo reconstituir os mais antigos indícios da presença desses gigantes pré-históricos em nosso estado, alcançando um recuo de milhões de anos em relação às datas até agora aceitas. O artigo que relata a pesquisa foi publicado na revista científica Journal of South American Earth Sciences.
O geólogo Lucas Warren, professor do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp, câmpus de Rio Claro, foi o autor das observações iniciais que resultaram na pesquisa. Dez anos atrás ele já explorava o território entre os municípios de Rio Claro e Piracicaba, conduzindo estudantes de geologia para confeccionarem mapas de diversas formações rochosas e afloramentos que são visíveis na região. Nesta área, encontra-se a chamada Formação Piramboia, nome dado a uma unidade geológica de rochas sedimentares (isto é, formadas pela deposição de sedimentos, gerados pela desagregação de outras rochas já existentes), e que nesta região chega a ter por volta de metros de espessura.
Ao descer um córrego no município de Ipeúna acompanhado dos estudantes, Warren pôde examinar as rochas sedimentares expostas em um pequeno cânion. O processo de deposição destas rochas resultou na produção de diferentes camadas, com formas e composições distintas. Em algumas destas camadas é possível observar a ocorrência de deformações, chamadas de estrutura deformação em sedimento inconsolado, ou soft sediment deformation structures — SSDS em inglês. Através da análise destas camadas, é possível inferir quais os mecanismos que levaram ao surgimento de tais estruturas, e correlacioná-las a possíveis eventos que tenham causado a deformação do sedimento.
Por exemplo, se uma camada de sedimentos embebidos em água acabou de se depositar e na sequência ocorre um terremoto, a passagem das ondas sísmicas vai afetar a organização do material, dispersando-o para cima e para baixo e deformando o depósito. Isso vai permitir que, centenas de milhões de anos depois, um geólogo possa identificar essa feição mais “sacudida” na forma de diferentes deformações na camada correspondente ao período de tempo em que o abalo ocorreu.
Durante a observação do cânion e de outros afloramentos de rocha junto com os alunos, Warren pôde observar as ondulações em algumas camadas expostas na rocha, e se questionou se seriam indicativos de atividade sísmica. No entanto, a deformação se propagava para baixo. Era como se algo tivesse amassado o sedimento ali, que depois foi preenchido por areia trazida pelo vento. “Na hora pensei que a causa poderia ser orgânica. Não existe um processo físico de fácil explicação capaz de abrir um buraco daquela forma em uma camada sedimentar exposta”, explica o docente.
Manadas em deslocamento
Ao longo dos anos seguintes, ele continuou a percorrer a região, tanto conduzindo alunos como realizando suas próprias prospecções. Conseguiu encontrar outros locais onde esses “achatamentos” misteriosos estavam registrados na rocha, embora visíveis apenas para os olhos treinados de um geólogo especializado em sedimentos. E percebeu outras características curiosas. Uma delas é que em várias rochas os “amassados” na camada ocorriam a distâncias regulares. A extensão destes intervalos, porém, podia variar muito, indo de dois ou três metros até apenas dez centímetros. Outro fator estranho dizia respeito ao formato. Os tais “buracos preenchidos” não eram perfeitamente simétricos; apresentando variações nas suas extremidades. No total, Warren e seus colaboradores mapearam cerca de cinco dezenas desses “amassados” em afloramentos rochosos dispersos numa área de 30 x 30 km2.
O geólogo então convidou o estudante de doutorado Bernardo Peixoto, do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais da Universidade Federal de São Carlos, para dar uma olhada em alguns dos sítios que ele havia mapeado. Peixoto pesquisa pegadas, tocas e outras marcas deixadas por animais pré-históricos em sedimentos que se tornaram rocha depois de milhões de anos. “Eu disse que achava que elas tinham sido formadas por animais grandes, talvez dinossauros. Ele na hora confirmou”, conta Warren. O nome técnico para essas estruturas é undertracks, e quando há grandes chances de terem sido produzidas por dinossauros, são chamadas dinoturbações.
Existe uma vasta literatura de pesquisas sobre undertracks e dinoturbações, e os dois, junto com a hoje mestranda Beatriz Christofoletti, então orientanda de iniciação científica de Warren, expandiram os estudos nesta direção. Eles buscaram comparar seus achados com pegadas de dinossauros encontradas também em rochas da chamada Formação Guará, localizadas no Rio Grande do Sul, além de dados coletados em estudos feitos na Namíbia.
As análises permitiram formular hipóteses. As dimensões das pegadas registradas na rocha — algumas chegavam a ter meio metro de profundidade — deixavam claro que se tratavam de animais de grande porte. “Talvez entre quatro e seis metros de comprimento, e pesando toneladas”, diz Warren. A assimetria observada nos buracos se deveria ao movimento da pata dos animais, ao se apoiar no solo para executar a passada. As diferenças de extensão de tamanho das dinoturbações poderiam indicar a presença de indivíduos adultos e outros menores, talvez filhotes, andando lado a lado. E a ideia de que os animais se deslocavam em grandes grupos permitiu explicar outro elemento observado, uma estrutura semelhante a um pilar de areia, como se uma camada de alguma forma injetasse parte do seu material na camada de cima: em outras palavras, como se uma camada penetrasse na outra.
“Isso pode ser visto hoje em dia em diversos locais onde ocorrem animais de grande porte”, explica Warren. Ele cita o exemplo de observações feitas no Rio Okavango, em Botsuana, na África, que possui camadas de argila úmida s alternadas a camadas de areia úmida. “A passagem de grupos de hipopótamos gera ondas de choque que se propagam para baixo do leito do rio e movimentam o material. A propagação dessas ondas forma estruturas semelhantes a torres de areia, que penetram na argila, semelhantes ao que nós observamos”, diz.
Jurássico ou não?
O desafio a seguir era obter datações das dinoturbações. A idade da Formação Piramboia é objeto de debates intensos há décadas. Há os defensores de uma origem mais recente, por volta de 140 milhões de anos atrás, e outros que sustentam que ela pode ser até 100 milhões de anos mais antiga. Combinando as observações sobre o porte dos animais com o uso de métodos de datação diretos e indiretos, os pesquisadores puderam estimar que as pegadas foram feitas durante o chamado período Jurássico Médio, que ocorreu entre 174 milhões e 140 milhões de anos atrás. “A Formação Piramboia é uma das únicas formações geológicas sabidamente jurássicas do Estado de São Paulo”, diz Bernardo Peixoto.
Essas datações tornam a descoberta bastante relevante do ponto de vista da paleontologia brasileira, isto é, do estudo dos dinos no Brasil. O próprio fato de as pegadas remontarem ao Jurássico já é um diferencial “A maior parte dos dinossauros encontrados no Brasil pertence ao Triássico (entre 252 milhões e 201 milhões de anos atrás), que foi quando eles surgiram e começaram a se diversificar, ou ao Cretáceo (entre 145 milhões e 66 milhões), que é um período mais recente”, diz Bernardo Peixoto. “E estas dinoturbações são dezenas de milhões de anos anteriores aos achados mais antigos que até então se conheciam no Estado de São Paulo, que pertencem ao Cretáceo. Estes passam a ser os vestígios de dinossauro mais antigos do estado”, diz ele.
Peixoto diz que, uma vez que a Formação Piramboia, situada em São Paulo e a Formação Guará, que fica no Rio Grande do Sul seriam uma mesma camada de rocha, portanto correlacionadas temporalmente, é possível que elas apresentassem semelhanças tanto no ambiente como na fauna de dinossauros. No caso dos estudos no RS, já há estudos reconstruindo a aparência que tinham os animais que viveram por lá à época. Uma dessas ilustrações está reproduzida acima.
“São raros os lugares no Brasil e em outros países tropicais onde se pode observar a rocha sem que esta esteja recoberta por solo ou vegetação, por isso o estudo das dinoturbações é tão importante”, diz o doutorando. “É uma questão de tempo até encontrarmos pegadas em plantas que permitam identificar o grupo de dinossauros que as produziram. E há até o potencial de encontrar ou seja, restos fossilizados de ossos destes grandes animais.”
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