Tarde de sábado, inverno. No quarto, à porta fechada, revejo minha coleção de igrejas góticas. São recortes de jornais e revistas e alguns cartões postais adquiridos em sebos. Retorno à lembrança daqueles dias, dos quais falarei mais adiante, quando vejo essa minha coleção. Ninguém sabe que a tenho. Quer dizer, meu pai não sabe. Minha mãe, também não. E nem meus irmãos. Este é o meu mundo. Alguns o chamam de família. Mas eu ainda não tenho motivo para chamá-lo assim. E, talvez, nunca venha a tê-lo.
Estou deitado na cama, ainda desarrumada. De barriga pra cima, as pernas cruzadas, e as mãos, unidas à nuca, sobre o travesseiro. No teto, o ventilador funciona fazendo barulho. Falta de manutenção. Tudo nesta casa, quebra e vai ficando sem conserto. Assim foi com as pias da cozinha e do banheiro. E com o reparo da descarga do vaso sanitário.
Surgem as primeiras goteiras no teto. O telhado da casa também está danificado. É preciso comprar telhas novas, mas falta dinheiro. A goteira é longe da cama, menos mal. Devo levantar-me e colocar o balde pra não molhar o assoalho dessa casa velha e deteriorada, caindo aos pedaços, onde moramos. Mas o cansaço é tremendo, depois do esforço da noite anterior. Deixo tudo como está. É o que sempre faço. E as coisas acabam se resolvendo por si mesmas. Nem sempre é a solução mais adequada, a que se apresenta. Mas é melhor que nada. Pois ainda que surja outro problema, não será o mesmo problema de antes, que tanto incomodava.
Eu admiro a chuva. A chuva forte, de granizo. E admiro o vento que antecede a chuva. O vento forte limpa o ambiente por onde passa. Consome os pensamentos deletérios que pairam sobre nossas cabeças e nos atormentam. Li sobre isso, dia desses, em algum almanaque. Sofro de insônia e por isso passo quase todas as noites, acordado, lendo. Na falta de coisa melhor por fazer, é como mato o tempo, nas noites que demoram a passar. Mas, quando pego no sono, e vez por outra, isso acontece, já é quase dia. Não há tempo suficiente para descansar o corpo e libertar a alma para um passeio pelo nirvana. Então, os dias são terríveis, arrastados, pesados, tudo incomoda. Tudo. Coisas, lugares e pessoas. Poderia utilizar-me disto para justificar o fato de eu ter começado a fumar e a tomar café, alguns meses atrás. Tenho 14 anos. Mas, sobre isso, se é que vale a pena, falarei depois.
Até os 13, vivi muito bem. Papai era contador, tinha o seu próprio negócio, um escritório acanhado, mas bem montado, com telefone e tudo, na garagem da casa onde morávamos, numa cidade do interior, que me recuso a dizer o nome. Conseguiu ser dono de si, depois de trabalhar quase 25 anos numa loja bem conceituada e com muitos clientes. Era um bom homem, ainda que pairassem dúvidas sobre a sua honestidade. Todo contador carrega essa pecha, por vezes, injusta. Mas, em determinado momento, parece que as coisas começaram a não dar muito certo na vida de meu pai. Perdemos a casa e o seu negócio fracassou. Nunca soube exatamente por quais motivos. E ninguém se preocupou em me explicar. Numa família formada por cinco pessoas, o filho mais novo é o último a saber das coisas. Quando vem a saber. E isso quase nunca se dá.
Essa é a lembrança mais recorrente daqueles dias felizes de minha vida. E nos mudamos então, para São Paulo, por sugestão de um irmão de minha mãe, que nos disse maravilhas sobre a capital, e nos convenceu a vir para cá. Maldita hora. Sobre os meus pais, irei falando aos poucos. Se eu tiver paciência e disposição. Sobre mim, apresento-me, caro leitor, com a devida vênia, como um garoto pobre, indolente, beirando a revolta e a marginalidade. Resvalando com o perigo, todas as vezes que sai de casa, para ir à escola, quando vai. Vivo apanhando de minha mãe, cintadas e chineladas todas elas, porque Dona Sônia detesta me ver no quintal, feito idiota, tomando chuva, olhando para o chão e os braços largados ao lado do corpo.
Bem, mas este é um aspecto nada agradável de minha rotina. Por isso, bem cedo me convenci, que as melhores coisas da vida, para certas pessoas, são adiadas indefinidamente, e receio estar entre elas. Tenho apenas 14 anos de idade, e nem um pouco preocupado com o que virá pela frente. Se é que virá. Porque vitória, para mim, é livrar-me das pedras que, todos os dias, veem na minha direção. Pedras de descontentamento, de frustração, mágoa e revolta, daqueles que convivem comigo, minha família, e com as quais tenho de conviver, porque delas, por mais que tente, não consigo me livrar. Que tormento de vida!
(Trecho do romance “Os dias felizes de Thomas Adler”, de minha autoria, ainda inédito).
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Ilustrativa/Reprodução Internet