Tradicionalmente, a democracia representativa – também chamada de democracia burguesa – é formada por processos e procedimentos complexos. Muitos estão definidos em nossa Constituição Federal de 1988, como o voto livre, secreto, direto – aliás, como cláusula pétrea, ou seja, sem a possibilidade de receber PEC (propostas de emenda constitucional). Também definimos em 1988, instruções da democracia direta, como:
referendo, plebiscito, iniciativa popular. Além de instrumentais jurídico-democráticos, a exemplo do direito de petição encaminhado ao Poder Público.
Outros meios nós não disciplinamos, talvez porque nunca quisemos aprofundar “demais” a democracia: recall judicial, veto popular. Bem como nossos processos e procedimentos desembainhados em 1988, hoje, estão aquém de Iniciativas Constitucionais bolivianas, chilenas e outras. No entanto, e isso é fundamental, o voto foi tornado sacro na transposição do regime militar de 1964 – alguns desses temas circunstanciados serão abordados nesse texto.
Também de modo tradicional, na democracia burguesa formal, como foi estabelecido por nossa Justiça Eleitoral, o voto pode ser útil ou se apresentar como voto em branco, voto nulo ou abstenção. Indiferentemente ao que juristas e políticos possam alegar, pensamos que os significados desses três votos são muito específicos:
- O voto em branco assegura que o(a) eleitor(a) não distingue substancialmente
nenhum dos candidatos, isto é, “qualquer um pode herdar sua declinação política”
(no caso, seria o candidato vencedor do pleito). - O voto nulo significa, exatamente, o contrário do voto em branco: nenhum dos candidatos representaria o(a) eleitor(a). A insatisfação política não permitiria dormir em paz, transferindo, delegando, as decisões políticas a nenhum dos postulantes ali listados.
- A abstenção é uma espécie de elevação à potência, em relação ao voto nulo, uma vez que o(a) eleitor(a) – salvo condições pessoais, especiais, que incapacitem o exercício do voto – está claramente nos dizendo: “Não me identifico, em nada, com essa democracia burguesa que aí se apresenta”. E, assim, simplesmente, declina do direito ao voto, como recusa ao sistema.
Observando-se pelo viés da Ciência Política, de modo amplo, podemos classificar o voto em branco, o nulo e a abstenção, como “votos inúteis”. Mas, por razões um pouco diversas: tanto o voto nulo quanto a abstenção significam, na prática, um NÃO ao sistema e o voto em branco um SIM sistemático, indiferente ao que acontece. É como se o voto nulo e a abstenção dissessem que nada ou ninguém presta (desinteresse total) e o voto em branco, ao contrário, implicasse numa forma de alienação política: um “tanto faz” sempre fora de hora, como é todo descompromisso com a Coisa Pública.
Pois bem, ao largo disso, ainda fazemos outra distinção – ao menos no Brasil – detectável da tradição eleitoral em que se diz “não vou perder meu voto”. Nesse caso, pode-se assim pensar que indivíduo seja consciente do processo – “o meu candidato não chegará ao segundo turno, o outro sim, e temos um inimigo em comum”: como se o sujeito votasse no Plano B – e há os absolutamente inconscientes de tudo: “só voto em vencedores”. Do ponto de vista republicano, esse voto inconsciente (alienado) é fatalmente inútil, é desagregador ao próprio Princípio Democrático: quando se vota apenas no vencedor, a democracia é a maior perdedora.
Por isso, esse segundo subtipo de voto inútil, mas apelidado de voto útil, é o que abordaremos melhor agora. Tomemos o caso presente das eleições presidenciais de 2022: as pesquisas sérias trazem o indicativo consolidado (como senso da realidade) que a diferença entre Lula (PT) e os demais cresce numa constância definitiva e isso pode implicar na vitória no primeiro turno. Pois bem, a se confirmar essa linha evolutiva de assentamento da definição do voto, outras questões se manifestam: A primeira, já mencionada, é que o(a) eleitor(a) já antecipe, declare, seu “voto útil”: muitos saindo do curral eleitoral de Ciro Gomes, outros da suposta 3ª Via, e outros que ainda estavam indefinidos. A se corroborar esse curso, a vitória no primeiro turno estaria melhor pavimentada.
Contudo, esse quadro ainda traria outras reflexões: 1. A integridade física, pessoal, do ex-presidente corre risco efetivo? Há risco de sofrer atentados (já sofreu pelo menos um); 2. Insatisfeitos com a “derrota antecipada”, os possíveis derrotados já no primeiro turno, poderiam entrar em algum tipo de colapso político e mental: dos atentados aos ataques viscerais nos debates por exemplo; 3. A fim de se evitar tanto os atentados quanto os ataques (ao vivo), o melhor, para o candidato afirmado pelas pesquisas como “vencedor antecipado”, não seria furtar-se de compromissos externos, nas vias públicas (atentados), e dos tais debates (ataques viscerais)? 4. Neste caso, a “campanha vencedora” teria uma guinada para o campo digital e, em assim sendo, o avanço da esquerda nas mídias sociais deve ser ressignificado, redimensionado.
Avaliando-se pragmaticamente – com base no realismo político: qual estratégia é melhor para conquistar ou manter o poder? –, pode-se concluir que clarificando-se a possível vitória no primeiro turno, Lula deveria sair das ruas (contraiu COVID-19 recentemente), dos debates (se houver) e embarcar na campanha digital. Todavia, aqui há um complicador ou sinal amarelo também. O digital (virtual, desvirtualizado) é um “mato cerrado”, dominado por intolerantes, racistas, bots (robôs digitais), fascistas, psicopatas e pelo público caçado por eles.
Desse modo, a campanha precisaria ser totalmente redirecionada, porque um partido de massas, como é o PT, cresceu e se habituou a ocupar a via pública, com seus vários movimentos sociais; inclusive os segmentos sociais desprovidos de acessibilidade digital. Como a campanha poderia redimensionar esse histórico de enormes mobilizações populares e sindicais? Como se defender diante da denúncia ou queixa diante da inacessibilidade do candidato? Como se distinguir do marketing digital fascista, ocupando-se do mesmo meio digital?
Aqui, entramos na questão da segurança. Dado o esgarçamento social, fruto da polarização exacerbada, há sim risco para a integridade física dos candidatos. Os eventos de 2018, com o ataque ao então candidato Jair Bolsonaro em Juiz de Fora (MG), ainda estão na memória – ataque esse que, lembremos, pavimentou a vitória bolsonarista. Mas, o quadro hoje é diferente em relação àquela campanha.
Em 2022, o ódio está presente no debate nacional. Para alguns, a candidatura Lula não pode se materializar. Não por acaso, os comandos de campanha buscaram os órgãos de segurança pública, Polícia Federal em especial, para discutir a situação atual. Recentemente, uma caravana petista, com Lula presente, enfrentou problemas em Campinas (SP). O risco está aí, à espreita – e na cara de todos.
Como referência, o romance “La forma de las ruinas”, publicado em 2016 pelo colombiano Juan Gabriel Vasquéz, traça o panorama político e social de seu país no século XX e no início do XXI. Chama a atenção o assassinato da então maior liderança da Colômbia, Jorge Eliécer Gaitán. A trágica morte, durante um comício em Bogotá em 1948, dividiu a Colômbia em duas e, de imediato, gerou manifestações na capital que acabaram conhecidas como “bogotazo”. Não foi o único assassinato de um líder político no país, mas ele dá a exata dimensão do que pode ocorrer no vizinho, o Brasil. Todo cuidado não será exagero.
Por:
Vinício Carrilho Martinez – Cientista Social
André Pereira César – Cientista Político
Vinícius Scherch – doutorando pela UFSCar