Ana Cristina olhou para o relógio de parede e se deu conta de que há mais de duas horas estava naquele quarto de hospital. A tarde ia embora aos poucos e a última claridade do dia ainda entrava timidamente pela janela aberta e se esparramava pelo chão, indo alcançar o rosto do pai, deitado na cama, de barriga pra cima, debaixo do lenço, imóvel, sem expressar nenhum sinal de vida. Mas o equipamento colocado numa mesinha ao lado da cama, marcava o ritmo dos batimentos cardíacos que, embora, muito tímidos e vagarosos, persistiam, mais um pouco, sempre mais um pouco, como se recusassem a parar.
Enquanto se lembrava das palavras desanimadoras do médico, pela manhã, quando viera visitar o paciente, o olhar de Ana Cristina divagava pelo quarto, como se a procura de algo estivesse. Talvez uma boa lembrança de um momento vivido com o pai. Uma que fosse. Algo que se tornara escasso, quase inexistente, desde o nascimento do irmão onze anos mais novo que ela. Fabinho tomara para si todas as atenções da família. Não bastasse os seus cabelinhos loiros esvoaçantes e os seus olhinhos azuis, muito lindos, vivia também doentinho, para o desespero da mãe e o cuidado redobrado do pai. E, com isso, a pequena garotinha de 11 anos, chamada Ana Cristina, foi sendo posta de lado, naturalmente. Era menina. Não seria portanto, um futuro craque de bola, como da vontade do pai. Talvez, uma professora, que era o caminho mais comum e sensato para moças prendadas naqueles idos de 1970.
Ainda naquele tempo de sua meninice Ana Cristina amava o pai. E talvez fosse esse sentimento perdido com o tempo, que tentava encontrar enquanto olhava distraidamente pelo quarto, percorrendo com olhos as paredes, o teto e o chão, e as coisas de menor importância, demorando a deitar os olhos sobre o pai, porque encontrá-lo naquelas condições lhe causava um certo desconforto, que beirava o sentimento de culpa.
Tentara fazer o melhor por ele, desde que o pai adoecera e fora bater à sua porta, desemchabido e decepcionado com o filho mais novo, de quem esperava muito mais. Mas, agora, o filho mais novo, Fabinho, recém casado e pai de uma garotinha cheia de sagacidade, tinha lá seus muitos afazeres e preocupações, tinha de lutar com a vida, situação que, rebaixara o pai naturalmente para a terceira ou quarta posição, na ordem de importância afetiva do filho mais novo.
Foi então, que Ana Cristina lembrou-se do irmão. Por onde andaria? Nunca mais dera notícia, nem fora visitar o pai. Por que agia desse modo? Por que as atitudes do irmão mais novo contrariava o sentimento que ele dizia ter pelo pai e que, em certa medida, demonstrara algumas vezes.
Às 19 horas, a enfermeira que assumia o turno da noite, entrara no quarto para fazer a medicação do tratamento paliativo que visava apenas minimizar a dor do paciente. Ana Cristina lembrou-se que, dali a pouco, às 19 e 30, seria sua vez de trocar o turno com o marido, que viria para passar a noite com o sogro.
Feita a medicação a enfermeira deixou o quarto, despedindo-se com um sorriso que mais parecia um pedido de desculpas. Ana Cristina compreendeu de que deveria despedir-se do pai, talvez com um beijo, pela última vez. Aproximou-se da cama e fez menção de beijá-lo, mas, não o fez. Talvez uma palavra de conforto faria ao pai um efeito melhor que qualquer medicamento. Uma palavra que transmitisse ao pai, naquele momento, não apenas conforto, mas, segurança e alívio. Ficou a olhar para o pai, ainda tentando encontrar uma agradável lembrança que não fosse aquelas tão distantes, tão desgastadas pelo tempo, quando ainda era uma garotinha, de 9, 10 anos e saía com o pai a dar voltas de Kombi pelas ruas do bairro de Vila Americanópolis, recém asfaltadas. Mas, não. Não as encontrou.
Aproximou um pouco mais o rosto do pai, na esperança de que ele pudesse ouvi-la. As palavras estavam em sua boca mas custavam a sair. O quarto, nunca tão silencioso como agora, havia escurecido quase completamente. Um vento gelado entrava de súbito pela janela aberta. O aparelho, sobre a mesa, ao lado da cama, continuava a registrar os batimentos cardíacos do corpo cansado e vencido do pai, mas já não o faziam no mesmo ritmo e frequência de antes.
Ana Cristina entendeu que o momento era inevitável e o fato natural da vida se impunha. Jamais imaginara, todavia, que seria tão difícil presenciá-lo. O pai, então, esboçou abrir os olhos e buscou a mão da filha, tateando sobre o lençol, onde ela repousava a sua. Ana tomou a mão do pai, magra, machucada, sensível, quase sem vida, e a levou de encontro ao seu rosto. Disse, comovida e baixinho, e entre soluços:
“Obrigada, pai. Pode ir tranquilo, em paz. Você fez o seu melhor. Cumpriu a sua missão. Nós ficaremos bem. Vá em paz, querido! Não olhe para trás”.
Beijou-o na testa e deixou-o.
Ao sair para o corredor, não encontrou o marido como imaginava. Encostado na parede, cabisbaixo, estava Fabinho, o irmão mais novo.
“Precisamos conversar” – ele disse, muito decidido.
“Não agora”.
Conhecendo a irmã, ele não esperava outra resposta. Baixou a cabeça, resignado, e levou as mãos ao bolso, como de hábito, sempre que não tinha argumento para discutir ou não sabia o que fazer.
“Entre – disse Ana Cristina, sem olhar para o irmão – Talvez haja tempo de se despedir”.
Passou pelo irmão e atravessou o corredor. A medida que caminhava e ia ganhando distância de Fabinho, sentia-se melhor. Talvez encontrasse o marido e os filhos na recepção e, talvez, a vida pudesse recomeçar, a partir daquele instante. Ana desejava por isso. Mesmo que não tivesse a certeza de que seria possível.
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Reprodução/Shutterstock.com