Naquele tempo, ele chegava da escola tarde da noite, carregando na mão um caderno ou dois e uma caneta no bolso de trás da calça jeans suja e surrada, que não lhe saía do corpo durante toda a semana. Na cozinha, comia o que tivesse e depois, ia para o quarto, onde o gato Jovelino, fiel depositário de suas queixas e pecados veniais já o esperava pacientemente e com olhar resignado. Livrava-se do tênis fedido, abria a janela e ficava assim, à toa, ouvindo música e à mercê das ideias. Lidara, naqueles dias, com um sentimento de revolta transformada em cinismo, um desejo de vingança disfarçado de indiferença, um ódio contido, transmutado em repulsa pelo semelhante. Então, depois do silêncio longo e, por vezes, escuro, alguma coisa acontecia e agitava-lhe o coração até ser posta pra fora, expulsa, atirada no papel, como um jato de vômito, em forma de palavras. Pensava na mãe ausente que jamais voltaria, e quando dela se lembrava, algumas palavras tinham a forma de lágrimas e o cheiro de sangue.
O pai acompanhava o comportamento do filho à distância. Temia incomodá-lo, trazê-lo à realidade, que bem poderia, tudo indicava, ser perturbadora para ambos. Conversavam pai e filho o necessário. O pai aposentado, por invalidez, o filho tentando ganhar a vida, de algum modo, apesar das dificuldades e da falta de experiência e perspectiva. Difícil, porém, encontrar o caminho que pudesse levá-lo à conquista dos seus melhores sonhos. Pai e filho viviam em mundos opostos. O filho 17 anos, o pai, 60. A mãe… Não fazia parte dessa conta.
Tentava dialogar com a vida através da música e dos livros. Eram coisas que satisfaziam as suas necessidades, a mais premente, romper a distância que o separava do sentido da vida.
O pai se conformava porque nem ele mesmo, aos 60, havia encontrado resposta para o sentido da vida. Por que o filho, com 17, encontraria?
O filho, sempre astuto e audacioso, tentou dialogar com a vida, através da paixão. Aquele sentimento arrebatador, envolvente, que faz estragos ao se despedir em definitivo. Mas quando teve coragem suficiente para revelar ao pai os seus sentimentos, foi aquele um momento tão constrangedor quanto admitir que fumava às escondidas.
Ela, a paixão, o repudiou, e ele, resignado, entendeu o seu lugar no mundo. Então, entregou-se aos estudos. Deixou a barba crescer. Passou a devorar livros, não importava a hora, o lugar ou a circunstância, dia e noite, lendo, sempre lendo. Como se a leitura fosse a rota de fuga mais acessível. E era. E logo, viu-se na necessidade de usar óculos, de aro redondo, de preferência, que lhe desse ares de intelectual. Foi difícil encontrá-lo. Mas conseguiu, em um brechó, no bairro onde morava.
Formou-se após alguns anos de muita persistência e esforço. Mestre. Doutor. Patrão, de si mesmo. Mas, e daí? Orgulho cheio e bolso vazio. O tempo, a passar, sempre, muito rápido. E dinheiro não via, mês a mês, nada. Nada de dinheiro. As pessoas não precisavam de um professor de Letras. As escolas não precisavam de um. Ninguém precisava. As pessoas não leem neste país. Inventam o seu próprio vocabulário, o seu jeito pessoal de se comunicar, e a vida, a de todos, menos a dele, caminha muito bem. Prestou vários concursos, mas sempre desistia dos mesmos, não importasse o resultado, porque sabia serem jogos de cartas marcadas.
Passou o tempo e o pai se foi. Morreu. E não deixou saudade. Não se sente saudade dos ausentes. Eles desaparecem para o mundo, assim, de repente, sem deixar vestígios em nossos corações. E não fazem falta. Ninguém faz falta a ninguém. A vida se basta a si mesma. Acostuma-se com a ausência dos que se vão antes de nós. Escrevera sobre isso dias desses. Mas não se lembrava onde havia colocado tais anotações.
Meses depois, vendera a casa e pusera o dinheiro no banco. E finalmente aceitara a oferta de emprego que o amigo querido de longa data lhe oferecera. A tarefa muito simples. Revisar processos, esvaziar a mesa e as prateleiras do amigo advogado. Não era agradável a tarefa, mas ajudava a consumir o tempo. E lhe rendia alguns trocados.
Mas o castelo, mesmo assim, apesar dos anos passados, das experiências vividas, foi se erguendo, dia após dia, a cada amanhecer, noite após noite, e a cada final de tarde. Em meio vendavais, invasões indevidas à sua intimidade, discussões com o seu próprio eu, inconclusivas tais discussões, quase sempre, foi-se erigindo os muros altos do castelo onde ele reinava absoluto, sem coroa, sem manto e sem trono, sem súditos. Um castelo de muros altos, fortes, intransponíveis, escuro, sem a luz do sol, uma fortaleza invencível feita de silêncio e solidão, onde se confinara. E se perdera, para sempre.
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Reprodução.