Enquanto crenças religiosas dividem e atitudes raciais segregam, a fé popular não alimenta preconceitos.
A capela erguida a Pedro Benedito no cemitério municipal é prova de que tudo pode ser um. Para celebrar a fé no poder de cura de um ex-escravo, a construção da capela reuniu cristãos de diferentes denominações, negros e brancos, homens e mulheres, ricos e pobres, jovens e velhos.
Mulheres de maioria branca, católica e de classe média realizaram e conduziram campanha para a construção do pequeno templo. A obra não esteve vinculada a nenhuma instituição espírita apesar da líder ser kardecista. O templo não é originalmente umbandista. É um espaço da espiritualidade popular livre.
Chamado túmulo de fé,o local,na quadra cem, rua quatorze com avenida quatro,é visitado ao longo de todo o ano. Ali fieis repousam angústias que se renovam em esperanças por cura e redenção.
Sem que haja testemunhos e conclusivos documentos de época, e como a memória não aceita vazios, lendas preenchem incógnitas dessa misteriosa fraternidade que segue viva. Em meio a crendices há fatos. Cabe voltar no tempo para vislumbrar como tudo aconteceu.
Assassinado
Pedro Benedito foi assassinado no sítio em que morava com sua mulher Luíza Conceição no bairro do Simão, vizinho ao bairro Jacutinga, na divisa com Corumbataí, em 04 de agosto de 1918. Negro, ele teria cem anos e vindo do Nordeste para trabalhar em Rio Claro como escravo, talvez na fazenda Santa Bárbara, entre Camaquã e Ipeúna.
Pela idade estimada, ele teria nascido antes da formação de Rio Claro e teria quatro anos durante a Independência do Brasil. Por haver sido comprado no Nordeste para trabalhar em fazenda paulista é possível estimar que ele tenha chegado à cidade antes de 1860 por influência da proibição do tráfico de africanos em 1850, quando as fazendas paulistas passaram a comprar escravos do Nordeste.
Por motivos ainda obscuros, ele foi vítima de cinco facadas desferidas por Pedro Felipe durante o mutirão que amigos de Benedito faziam para construção de sua casa no bairro do Simão, ou Simões. A autópsia realizada por Francisco Penteado Junior, o doutor Chiquinho, atestou morte por hemorragia na região direita dos rins. O médico era irmão de Irineu Penteado, prefeito entre 1921 e 1930, e, por sua vez, também seria prefeito entre 1936 e 1939.
O crime foi testemunhado por Sebastião Luiz. O assassino estava embriagado e foi preso em flagrante depois que Sebastião Luiz o feriu com uma foice na tentativa de desarmá-lo da faca com que atacava o velho Benedito. Depois de ser recolhido à cadeia local, não há alcance para saber sobre o julgamento e condenação do Pedro Felipe.
O crime chocou a cidade pelo requinte “perverso” e de “barbaridade” apontado pelos jornais “Diário do Rio Claro” e “O Alpha” em suas edições do dia 06, uma terça-feira. Em seu relato ao “Diário”, a testemunha disse que o assassino subira “a cavalo” nas costas de Benedito e nessa posição o esfaqueou seguidamente. Os jornais qualificam o matador Pedro Felipe como “perigoso quando alcoolizado” e “conhecido desordeiro”.
Há divergência quanto ao dia da morte. Enquanto os jornais falam em 04 de agosto, na tarde de um domingo, o registro de sepultamento aponta dia 03, sábado. Não é a única diferença. Segundo os jornais o crime aconteceu no bairro dos Simões. O registro oficial situa a ocorrência na fazenda Santa Bárbara. Os locais são separados pela área de Camaquã. Por fim, a imprensa diz que Benedito era natural de Pernambuco. O laudo de sepultamento feito pelo administrador do Cemitério Américo Pereira diz que era do Ceará.
Como a ocorrência se deu no dia do mutirão de voluntários que construíam a casa de Benedito, seria comum pensar que era um domingo, portanto dia 04. Na capela do Cemitério adotou-se a data de 03 de agosto.
Motivo
Sem que se conheça o conteúdo do julgamento de Pedro Felipe, o motivo do crime fica aberto a especulações. Conforme se viu pelos registros da imprensa, o assassino tornava-se violento quando se embebedava.
Segundo “O Alpha”, ao final do mutirão Benedito ofereceu cachaça aos colaboradores, completada a jornada de trabalho. Depois de alguns goles, três ou quatro foram embora. Só Pedro Felipe permaneceu no local e continuou bebendo. Seguiu-se a cena de violência. A tradição adotou acrescentar ao episódio eventual assalto, uma vez que Benedito teria economias recebidas como doações para construção da casa. E Felipe estaria interessado no dinheiro.
O mito
Conforme perfil traçado por registros de época, Benedito era “pobre”, “trabalhador”, “honesto” e “pacífico”.
Vagas reminiscências sugerem ser comum à época a prática de mutirões para plantios ou construções e que Benedito os realizaria com partilha da produção. Ele seria respeitado na cidade por sua humildade e porque ser benzedor que cuidava de pessoas pobres. Por seu conhecimento de plantas curativas, com as quais produzia remédios chamados “garrafadas”, era considerado sábio e chamado de “mestre” ou “pai”.
Após a morte, seu túmulo, sem campa, que ficava em local não mais identificado da antiga quadra geral do cemitério, passou a receber flores e velas daqueles que haviam sido por ele assistidos ou com ele trabalhado em mutirões. Começava a se formar um mito.
Nos anos seguintes, a sepultura tornou-se local em que as pessoas buscavam cura e conforto espiritual. Logo começaram a surgir testemunhos de graças atendidas. Tornou-se comum atribuir-se que ali estava enterrado um santo negro rio-clarense.
Ao longo do tempo, Pedro Benedito passou a ser chamado de “Pai Benedito”, nome semelhante ao de diversas entidades umbandistas. A semelhança levou a tradição a associar sua imagem a cultos da umbanda, mas a devoção a Pedro Benedito é fenômeno local, uma história própria de Rio Claro e não umbandista. Seu conhecimento de plantas medicinais, por sua vez, o liga diretamente à sabedoria afro-brasileira.
Anos 1950
As manifestações de fé no poder de cura do velho preto se ampliaram a ponto de espontaneamente exigir a construção de uma capela que expressasse a “gratidão de seus devotos pelas graças alcançadas”, conforme registra o “Diário do Rio Claro” na edição de véspera da inauguração do pequeno templo. Os fieis queriam um espaço mais adequado que o velho túmulo para oferecer flores, velas e orações.
Nas décadas anteriores várias tentativas haviam se visto frustradas. Mas desta vez as intenções se realizaram. A diferença é que um grupo de mulheres assumiu e realizou a tarefa. Elas mobilizaram a cidade, recolheram donativos em dinheiro e material de construção. Conseguiram apoio “das colunas do Diário”, pelo qual faziam prestação de contas, além de um livro caixa.
Entre inúmeros sobrenomes de doadores à campanha encontram-se registrados no livro caixa: Scarpa, Prado, Camargo, Gaib, Cresta, Perinoto, Rocco, Lahr, Raab, Nalim, Colabone, Cattai, Jordão, Baciotti, Valdanha, Catuzzo, Ceccato, Marrach, Wiechmann, Saraiva, Bindilati, Jardim, Nogueira, Mascarenha, Sarti, Rocha, Caligaris.
Independentes de credos religiosos, aquelas senhoras, que de maneira geral eram católicas, conseguiram apoio do prefeito Augusto Schmidt Filho, o que significou a doação por parte do município de um terreno perpétuo para a construção. A meta era exumar e transferir os restos mortais de Pedro Benedito para uma nova sepultura na capela que seria e foi construída.
Apesar da curadora da obra ser cristã kardecista, a campanha não esteve vinculada formalmente a nenhuma associação espírita da cidade. A doutrina kardecista é difundida em Rio Claro desde 1895 por iniciativa de Esperidião Prado. Por época da morte de Pedro Benedito, ele era vereador e assumiu a prefeitura em 1921.
Para administrar os donativos, o grupo de mulheres abriu uma conta na agência da Caixa Econômica Federal. Balancete era publicado seguidamente pelo “Diário”. Além de garantir a obra, as doações eram direcionadas à assistência de famílias pobres e a entidades como Clube da Lady, Lar Bethel, Casa dos Espíritas, Bezerra de Menezes, Nosso Lar, Guarda Mirim.
A inauguração
Perto de três mil pessoas participaram da inauguração da capela. Era 19 de janeiro de 1958, um domingo. Manchete do “Diário” convidava “rio-clarenses e não rio-clarenses” para o evento que não era mais local.
O jornal valoriza a iniciativa em sua “crença em torno do preto velho que dizem operar milagres”. A redação do “Diário” reunia Cecy e Mara David, mulheres símbolo do jornalismo paulista. Em uma de suas colunas, a jornalista Mara faz retrospecto da capela construída para o “santo milagroso dos rio-clarenses”.
Tanto é que as mulheres conduziam o ritual de inauguração da capela que o “Diário” as coloca como a instância decisiva para uma questão que surge na transferência dos despojos mortais para a nova sepultura. O que fazer se tantos queriam ter a oportunidade de carregar a urna mortuária por um curto trajeto? Então, elas resolvem ampliar o trajeto ao definir que o cortejo circularia por todo o cemitério. E assim foi.
Todos os que quiseram tiveram sua vez de segurar um pouco uma das alças do caixão em sinal de renovada e última despedida ao negro de Rio Claro considerado santo.
O cortejo seguiu emocionado, aos acordes do “Toque de Silêncio” programado pelo administrador do cemitério João Arrais Lopes. No interior da urna que seguia para a capela estavam toalhas bordadas e rendadas por aquelas mulheres de Rio Claro.
No Dia de Finados do ano seguinte, 1959, foram registradas 8.409 pessoas que visitaram a capela de “Pai Benedito”.
Naquele ano, Celeste Calil, autora do “Hino de Rio Claro”, compôs a letra do canto “Pai Benedito”. “Teus crentes, na luta de todo dia, te imploram, a nossa dor alivia!”, diz a canção da devota.
Tornou-se costume deixar na capela esmolas para serem destinadas aos pobres. E ninguém as roubava. Era um outro tempo. Outro mundo.
Brilho de estrela
Uma das organizadoras da campanha tinha motivo para se sentir realizada. Curadora da capela durante seus anos de vida até 1980, ela se dedicou ao amor ao próximo e ao exercício da caridade.
Personagem impar da fraternidade da fé sem preconceitos, seu nome era Judite. Símbolo da compaixão e da translucidez entre o efêmero e o eterno, sua vida e obra dependem de biografia a ser escrita. Mas isto é uma outra história, que fica para uma outra vez.
Por JR. Sant’Ana