Nanocontos
O Jaime Leitão é meu amigo há mais de 40 anos. Conheci-o na época em que fui aluno do gigante professor Luiz Martins, seu pai.
Foi-me apresentado como poeta, que o era, efetivamente. Depois de décadas, eu o reencontro. E, para minha surpresa, ele me entregou a obra “370 Nanocontos”, ou seja, versos com narrativas de uma linha só.
Da leitura, denoto a singeleza da ideia, que se mostra genial, porque, utilizando-se de um monóstico, centraliza o pensamento, lírico, sonhador, real, amoroso, ácido, irônico, perplexo e, igualmente, suave, triste, melancólico, alegre, e, ainda, dúbio, contraditório e laico.
Não sei quem possa ter se utilizado da técnica de versificar com um só verso.
Do Jaime, agora, sei.
Ressalvo a epígrafe, que, sendo uma frase, tem como propósito servir de mote à obra de autores.
Como se cuida de um verso só, é impossível que se fale em estrofe, que é o conjunto de versos, de dois ao menos, como o dístico. Em crescendo, o poema é composto, portanto, de uma só estrofe ou mais.
Fica lembrado que cada verso pode ser de uma só sílaba e, cuidando-se do verso bárbaro, apresentar-se com mais de doze sílabas.
Tudo isso está dito para destacar que o Jaime se cercou da intenção técnica de versificar versos de uma só frase, compondo-os com letras que, somadas, não podem ultrapassar vinte letras.
E a ginástica mental do poeta surpreende por ter conseguido se expressar em pouco espaço ocupado por letras, externando ideias e conceitos, que formam enredos, histórias, verdadeiros contos e mesmo poemas. Tudo no reduzidíssimo espaço temporal das páginas do livro, e no iluminado campo atemporal da concepção dos versos e, portanto, da obra “370 nanocontos”.
É realmente oportuno destacar que as formas consagradas, como o soneto, o poema em versos metrificados e os criados em versos livres, foram relegadas pelo Jaime, que visou, gigantescamente, com a criatividade de mestre, compor o nanoconto, que surge, quase sempre, em uma só linha, que pode ser tanto um verso como um conto nanico, levando o leitor para um mundo de dimensões menores (relativamente ao espaço dos versos), mas, que, apesar disso, evidencia o mundo encantado e desencantado, imbricados entre si, a desfilar no palco da vida de cada um de nós.
Realizo, adiante, várias anotações que, dizendo respeito à minha pessoa (herança familiar e social), encontram-se cifradas nos nanocontos e, daí, as suas revelações. Selecionei aqui alguns dos nanocontos para tecer os meus comentários.
“Pediu perdão. Levou tiro”
De frente para o verso, está revelado o fato inexorável de que, quem pediu perdão, ao invés do perdão, encontrou a morte. Esse verso é a súmula das histórias do mundo moderno, em que a pessoa pede por misericórdia, e o facínora lhe rouba a vida, por ninharia ou por nonada.
Pode-se dar outra interpretação. Esta menos factível. O menino, que se comportou mal na escola, pede perdão à diretora, que, no entanto, suspende-lhe das aulas. Ele, aluno, recebe isso como uma forte admoestação, como se tivesse sido socado ou levado um tiro. Como explicar em casa essa situação? É possível recriar em cima da criação do poeta.
O nanoconto número 3 é ultraconciso: “Safado e santo”. Essa narrativa me faz lembrar da história do Francisco, que não era safado por correr atrás de mulheres “perdidas”, mas, sim, porque derivava pelos bares da cidade e pendurava as contas nos açougues e padarias. Em casa, porém, fingia-se de santo. Era como se nada tivesse feito que o desabonasse.
No nanoconto 4, leio: “O casal brigava unido”.
Essa assertiva diz muito de meus pais. Minha mãe, irritada, sempre provocava discussão com meu pai. O motivo sempre era que isso não tinha ficado bom, nem aquilo, nem aquiloutro. Meu pai, com jeito, ia resolvendo todo o impasse. E, assim, passada a tempestade, o casal voltava às boas.