Na última semana, acompanhei uma entrevista (pra quem se interessar, buscar no Arquivo do “Estadão”, tanto a matéria escrita quanto a gravação, no YouTube) do jornalista João Marcelo Bôscoli ao colega de profissão Júlio Maria – autor de uma biografia de Elis. “Teria sido melhor ir ver o filme do Pelé”, como diria Chaves. Falar (bem) de nossos pais é a coisa mais natural do mundo, na verdade uma demonstração de humildade e gratidão. Porém, alçá-los à posição de imaculados ou categorizá-los acima de tudo e de todos é algo temeroso. Ainda mais quando, ao falar deles, estamos também informando.
A entrevista, que acontece em meio à divulgação do livro “Elis e eu – 11 anos, 6 meses e 19 dias com minha mãe”, foi na verdade muito mais reveladora sobre João do que sobre Elis.
Ao falar de Elis Regina, João Marcelo esquece-se do jornalismo. Aliás, em dado momento da entrevista, ele assume essa faceta: “se meu emprego fosse ser filho da Elis Regina, eu seria o trabalhador mais feliz do mundo”. De certa forma, esta se tornou a ocupação de João — e acabou, depois de dois belíssimos discos, virando também o job de sua irmã, Maria Rita (Pedro conseguiu trilhar seu próprio caminho — e talvez por isso o leitor não o conheça).
Em algumas passagens, misturando ironia com um orgulho pueril, Bôscoli não se contenta em exaltar sua mãe – que foi, sim, uma das maiores artistas e cantoras da história do Brasil –, e necessita compará-la a outros ídolos e personalidades brasileiros, de modo a dimensionar seu tamanho – para ele, os 1,53m de Elis eram inversamente proporcionais à sua grandeza.
Em dado momento, João fala sobre o fato de Elis ser uma pessoa simples, que ia à feira como qualquer dona de casa. “Ela já era (então) a primeira artista a vender 1 milhão de discos e tinha um especial na Globo”. Ao mencionar o programa da TV, ele a compara a Roberto Carlos: “Roberto tem um especial anual, por causa do talento; o dela era mensal, também por causa do talento”. Conclui-se, pois, que Elis fosse 12 vezes melhor que Roberto, correto? João vai além: vira para a câmera e, como RC fosse seu telespectador, diz: “desculpe, Roberto, mas daqui 250 anos não vão lembrar de você; da Elis, vão”.
(Parênteses: antes dessa entrevista, eu já havia me deparado com outra declaração complexa(da) de João Marcelo ao exaltar Elis Regina: em uma “mesa redonda” da revista Veja, ele afirma que “ninguém canta samba melhor que ela”. Um dos colegas à mesa cita Clara Nunes, e João retruca: “minha mãe cantava 77 trilhões de vezes melhor que ela”. Você, leitor, tem todo direito de preferir Elis a Clara, mas consegue perceber tal diferença na capacidade de ambas? É um desafio à própria lógica.)
Mas a linha argumentativa de João Marcelo não se limita à musicalidade. Ele a vê como uma espécie de mártir, uma verdadeira heroína – sem trocadilhos aqui, por favor. Ao descrever os eventos post-mortem, ele afirma que o velório/enterro da cantora teve “a mesma comoção do funeral do Ayrton Senna”, não sem antes dizer que “cantar é mais interessante do que dirigir” apesar de “admirar o trabalho que a irmã dele (Viviane Senna) faz com a imagem dele”. Mas se a morte de Senna foi causada por uma absurda fatalidade, o que causou a morte de Elis? “Foi o machismo”, afirma João. “Nós, homens, a matamos”.
Em um dado momento da entrevista, ao ser questionado sobre como estava conseguindo segurar a emoção ao relembrar tantas histórias, João Marcelo afirmou que tinha tomado “rivotril, frontal, gardenal e gim”. Talvez seja só mais uma hipérbole, mas, por via das dúvidas, tá explicado, João.