J.R.Sant´Ana*
Quem são eles? Mário de Andrade, Ulysses Guimarães, Guilherme de Almeida, João de Scatimburgo e os quase anônimos para Rio Claro, Yan Prado e Ferrignac. Este, que foi um dos primeiros carnavalescos de Rio Claro, quando decorava os clubes locais para os festejos de Momo. Suas principais obras são colombinas.
Mais do que destaque no grupo tem a família Prado, que construiu e administrou a Cia Paulista e o Horto Florestal. Inclui-se no encontro Siqueira Campos, o herói rio-clarense dos 18 do Forte de Copacabana.
Sem esquecer Plínio Salgado, líder integralista que tinha Rio Claro por sua segunda cidade. A cena inclui ainda a artista plástica local que pintou o Largo de São Benedito com reuniões de negros em 1923. Seu nome é Lúcia.
Contexto
O pano de fundo dessas personagens e situações são as fazendas dos ricos fazendeiros de café do município e cidades da região. Estes são elementos que ligam Rio Claro à Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro de Municipal de São Paulo em 1922.
Em busca de uma estética de vanguarda (de origem europeia, é verdade) que contribuísse para expressar a cultura nacional com foco local, a manifestação modernista marcou a transição da sociedade rural para a urbana em época de transição política e econômica do estado de São Paulo e do país.
Economia e política
O interior paulista tem economicamente tudo a ver com isso porque o desenvolvimento da cidade de São Paulo se deu com a transferência da riqueza das fazendas de café para a formação industrial paulistana. A transferência daquela riqueza transformou a provinciana capital na pauliceia desvairada cultuada pelos modernistas.
A começar. Da política, os modernistas eram inicialmente alienados. Até 1922 não haviam despertado para as questões sociais do país. Eram jovens intelectuais e artistas representantes de ricas famílias do café. Na prática atual, seriam chamados de conservadores. A atenção à política só lhes ocorreu anos depois, o que dividiu o movimento. Alguns flertaram com o comunismo. Mas nem sabiam o que era a coisa. Outras se agruparam à direita.
Estopim
O chute no balde pela modernização política do país não partiu daqueles artistas em São Paulo, mas de um rio-clarense militar, no Rio de Janeiro, e sua geração de tenentes. Ele foi o jovem tenente e rio-clarense Siqueira Campos, hoje destacado na história apesar de não reconhecido em Rio Claro.
Ele não tinha nada a ver com a arte moderna dos engomadinhos paulistas. Com aqueles, no entanto, tinha em comum o propósito de superar a tradição coronelística dos antigos fazendeiros.
Os artistas
Dois artistas plásticos rio-clarenses, Ferrignac e Yan Prado, participaram das três famigeradas noites modernistas no Teatro Municipal que se tornaram o estopim do movimento. Ambos eram do primeiro time do grupo vanguardista.
Aqui cabe uma nota. Ferrignac e Guilherme de Almeida eram do grupo de intimidade de Oswald de Andrade. Quando da morte do rio-clarense, em 1958, Guilherme de Almeida publicou emotivo artigo em que fala da amizade de ambos, inclusive em Rio Claro. Segue no anexo.
Yan e Scatimburgo
Ao longo dos anos, parte da trupe modernista e convivas apreciadores de vinho se manteve reunindo na lendária casa de Yan, em São Paulo, onde a elite paulistana dispunha de requintada mesa. Um dos frequentadores era o jornalista e professor membro da Academia Brasileira de Letras, João de Scatimburgo.
Rio-clarense natural de Dois Córregos, ele escreveu um livro sobre a mítica casa de Yan, a chamada “Pensão Humaitá”, como polo da intelectualidade paulistana. Guilherme de Almeida, que morou em Rio Claro durante a infância, era outro dos habitués.
Yan Prado desmerecia a fama da Semana de Arte Moderna. Dizia que tudo aquilo não passou de uma brincadeira de riquinhos. Desqualificava seus líderes, principalmente Mário de Andrade. Foi severo além do tom com ele em suas críticas.
Quem bancou
Dinheiro não faltou para aquelas três noites de polêmicas artísticas no Municipal. Quem bancou quase tudo foi a família Prado. Mais especificamente Paulo Prado, apaixonado por artes. Discreto, ele sugeriu que se divulgassem vários nomes de patrocinadores para não ser destacado demais. O evento deu prejuízo de sete mil e quatrocentos contos de réis.
A família Prado era uma das maiores fortunas de São Paulo, com fazendas de café, indústrias e a Cia Paulista. Tinha inúmeros vínculos com Rio Claro além do Horto Florestal. Vale lembrar que os Prados contrataram o engenheiro rio-clarense Elias Fausto para construir a cidade de Guarujá.
Ele era filho do fazendeiro local José Elias Pacheco Jordão, ex-governador interino de São Paulo. O pai tinha certa má fama entre imigrantes e escravos. Parece que não tratava muito bem o pessoal em suas fazendas. Mas foi um bom vereador, quando administrou a cidade nos anos 1850. Pula essa parte.
Mário e Ulysses
Ulysses Guimarães é personagem no conjunto pela curiosa condição de haver sido aluno de piano de Mário de Andrade. Ulysses dizia que nunca aprendeu nada além de tocar “La Cumparsita”. Certamente não pela deficiência do professor, um dos papas do modernismo.
Plínio
Quanto a Plínio Salgado, o integralista que considerava Rio Claro sua segunda cidade e aqui tem parte de seus arquivos pessoais, ele também participou da Semana. Não se apresentou ao público, ficou mais pelos camarotes, mas estava lá. Ele não era integralista na época porque o integralismo ainda não existia. Ele o inventou mais tarde, motivo que o tornou íntimo dos rio-clarenses. E inimigo das esquerdas. O Partido Comunista começa a engatinhar.
Professora de Rio Claro
Curioso nisso tudo é que uma italiana moradora em Rio Claro, chamada Lúcia Cereda de Lima, estava atenta às novidades. Professora de pintura, ela produziu diversos quadros na época com o estilo modernista. Uma de suas telas retrata uma festa de 13 de Maio no Largo de São Benedito. Ela pintou também um quadro da primeira missa em Rio Claro, em homenagem ao Centenário.
Não são conhecidos registros de que ela mantivesse vínculos pessoais com as lideranças modernistas. Mas provavelmente deve ter conhecido Ferrignac na cidade. Talvez até Guilherme de Almeida.
São Benedito
A tela em óleo do Largo de São Benedito traz negros reunidos em torno de fogueiras enquanto são assediados por almofadinhas brancos em um Ford bigode e por policiais com cassetetes nas mãos. A segregação era comum à época. O olhar atento de Lúcia já via isso com sensibilidade. A característica do quadro é ser densamente preto. Um toque de artista genial.
Chama a atenção o fato de a tela dos negros ser de 1923, portanto contemporânea da vanguarda que mudou a maneira de pintar.
Hadler
Rio Claro viveu os primeiros momentos do modernismo não apenas com Ferrignac, Yan Prado, Guilherme de Almeida, mas também com Carlos Hadler.
Professor de pintura na Escola Profissional (hoje ETEC Armando Bayeux da Silva), Hadler difundiu influências do estilo em nível local. Duas exposições de trabalhos feitos por seus alunos realizadas em São Paulo ganharam elogios de Mário de Andrade em artigos no jornal Diário Nacional.
Novos tempos
A modernidade econômica e política transferida do interior paulista para a capital esvaziou a importância dos fazendeiros da região.
Eles acabaram mudando para São Paulo e investindo na indústria. A mentalidade escravocrata aos poucos foi sendo superada pela legislação trabalhista comandada por Getúlio Vargas.
O país entrou em outra fase. Antes, o café do interior supria em 76% o mercado mundial. Só o café paulista. Por isso Rio Claro era uma cidade rica, capaz de fazer uma festa como a que se viu na comemoração do centenário, em 1927.
O país mudou em muitos aspectos a partir da crise de 1929, que trouxe Getúlio Vargas, a urbanização, a industrialização e a falência de muitos fazendeiros. É sempre bom lembrar que as portas para tal processo haviam sido abertas no chumbo pelo jovem rio-clarense, Siqueira Campos, o vanguardista da revolução pelas armas.
O sem busto
Fora do hall da fama erguido pelos artistas, outro personagem, Antonio Covello, era da turma. Amigo, em especial, de Anita Malfatti e Menotti Del Picchia, o também rio-clarense era diretor e proprietário do jornal “A Gazeta”, depois assumido por Cásper Líbero.
Ele foi um dos mais famosos advogados do Brasil. No salão de entrada Fórum local havia um busto seu, que desapareceu no tempo. Antonio Covello fez o encerramento da Exposição Industrial no Mercado Municipal realizada durante a festa do Centenário.
Covello se tornaria celebridade em 1928 como advogado no bombástico caso do “Crime da Mala”. O marido matou a mulher e esquartejou o corpo para despachá-lo em uma mala no porto de Santos. Mas isto é uma outra história, que fica para uma outra vez.
* O autor é jornalista, cronista de história e pedagogo.
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