Já fazia muito tempo, que aquele homem vivia nas pedras. Um vento muito forte, cruel e persistente, era constante naquele lugar inóspito e desconhecido. Nas pedras, o homem se banhava do sol e se abrigava da chuva. Era sua rotina. A noite, que naquele período do ano, parecia longa e interminável para os seus olhos atentos, trazia um pouco de paz e esperança ao seu coração descrente da bondade humana.
Não tinha lembranças sobre as quais pudesse se debruçar. Ele as abandonara com o passar do tempo. Eram pesadas demais as lembranças para arrastá-las no decorrer dos dias, no vagar das horas, na plenitude da sua existência solitária. Era magro aquele homem. Muito magro. Cabelos já quase não os tinha. No rosto, cansado e triste, além das marcas impostas pelo tempo e pelas intempéries da natureza, uma barba muito rala, mal formada, repugnante de tão feia.
As roupas que vestia eram velhas e puídas. O homem andava descalço. Em princípio, queimara os pés, mas depois acostumara a pele ao atrito do chão e às agruras do clima rude, instável, que predominava naquela região, por vezes, bela, e quase sempre, triste. Seus ossos e sua carne, sua dignidade e paciência, tudo se acostumara com o tempo à brutalidade daquele lugar que não escolhera para viver, mas onde permanecera diante da força impositiva das circunstâncias.
Sabia que do outro lado do rochedo, havia o mar, lá embaixo, longe, tão imenso e tão improvável à sua realidade. O mar, o sonho acalentado desde a meninice, havia se tornado o pesadelo interminável de sua vida.
Passava os dias, manhãs e tardes, e noites intermináveis, como a viver em uma prisão a céu aberto. Era sua rotina, já não sabia desde quando. Perdera totalmente a noção do tempo e já não tinha tanta certeza que, para além daquelas águas salgadas que sonhava um dia alcançá-las, houvesse mundo. Sonhara certa ocasião, que um jovem chamado Francisco viera visitá-lo trazendo-lhe alimento e remédio. Acordara sorrindo naquela manhã. O sonho nunca se repetira. Mas essa decepção deixara de ser importante.
Contava trinta e três anos, quando chegara àquele rochedo, em busca de comida e abrigo e esperança. No início tudo parecera uma aventura. E, depois, drama, que parecia não ter fim. Tivera vontade e esperança de que pudesse ser acolhido pela natureza, ou que encontrasse uma alma boa e caridosa para ajudá-lo. Ambas as coisas demonstraram-se improváveis. O tempo passara, soberano, e agora, tinha a certeza de que o mundo esquecera de si. Os dias passavam e nada se modificava. Então, logo se acostumara àqueles dias, ausente de pessoas e de acontecimentos. O espaço sem acontecimentos, quando o tempo inexiste; a eternidade. Pelo menos ali, podia amar e odiar, sem medo e sem culpa e sem remorso. Podia dar forma e cor à sua verdade, pois era a única coisa que de fato importava. Sempre fora. E, talvez, por isso, é que havia deixado tudo para trás e subido naquela embarcação, sem rumo e sem destino.
Nada disso importava agora. Havia perdido a esperança nos homens. E o mundo, tal como o conhecera, deixara de lhe interessar. Se é que restara alguma coisa do mundo, depois daqueles dias terríveis.
Por vezes, via de longe, alguns animais ou imaginava vê-los, não sabia ao certo. Noutras vezes, parecia escutar sons, ruídos e vozes. O barulho insano do vento, que chegava castigando, levantando poeira, modificando o cenário à sua volta, não mais que a chuva. Ouvia, por vezes, o canto dos pássaros. Beleza e dor se acariciavam em seu coração. Lembrava-se, então, da última coisa que escrevera antes daquele final de tarde, início de noite, quando tudo se modificara em sua vida para todo sempre: “As ideias devem percorrer a mente mas não permanecer; as aves ocupam o céu voando”.
Não. Não fazia diferença. Não mais. Nem uma coisa nem outra. Nem a fome. Nem mesmo a fome, tão atroz e tão desumana. Passava dias e dias sem se alimentar. Acostumara-se às dores e aos incômodos, do corpo desprovido de alimento e da alma despida de fé. Com o tempo, naturalmente, desenvolvera uma capacidade de abstrair-se do ambiente à sua volta. Como se nada além de si mesmo existisse. Nem mesmo o sol, as estrelas e o vento. Sua atenção e seu pensamento, como se ali não estivessem. E podia, por vezes, jurar que passava horas, dias, semanas, nesse estado de ausência, como se uma sombra grande e poderosa o encobrisse completamente. E quando retornava à consciência era como se menos de um minuto houvesse transcorrido. Essas idas e vindas à realidade, não lhe importava absolutamente nada. Não fazia diferença.
Então, certa feita, o sol que havia se levantado lento e tímido foi, repentinamente, se apagando aos poucos. Foi se dobrando, se pondo de joelhos, submisso, como o condenado diante de seu carrasco.
Nunca havia presenciado coisa igual. Embora suspeitasse que algo diferente, muito forte e decisivo estivesse por acontecer.
A escuridão apagou por completo o horizonte para além do mar onde suas vistas ainda podiam alcançar. E a sombra enorme e avassaladora foi fechando os olhos do mundo até encontrar os seus.
Por Geraldo J. Costa Jr. / Foto: Reprodução