João Gilberto morreu. Sobre sua grandeza, serei breve: único artista brasileiro a ganhar o Grammy, o Grammy verdadeiro, na categoria “Disco do ano” – desbancando tudo e todos do mundo musical. Roberto Carlos, Sergio Mendes, Tom Jobim, Milton Nascimento, Gilberto Gil e Caetano Veloso, nessa ordem, também venceram na premiação original, mas nas categorias “Latin Pop” (RC) “Latin Jazz” (Tom) e “World Music” (os outros quatro).
A notícia de seu falecimento me deixou triste. Não como quando foi com Ayrton Senna ou George Harrison, mas triste: era um ícone que abriu caminhos e criou coisas que todos os brasileiros aprenderam a amar.
Quando soube da reação do Presidente da República à notícia de sua morte, achei de uma superficialidade sem igual: “uma pessoa conhecida”, foi como Jair Bolsonaro definiu o maior nome da Bossa Nova. De imediato, me veio à mente João cantando os versos de outro gênio da música brasileira, Noel Rosa (a quem Bolsonaro talvez chamasse “pessoa conhecida”, também): “Quem é você que não sabe o que diz? Meu Deus do céu, que palpite infeliz!”.
Fenômeno comum àquelas “pessoas conhecidas” que morrem, João Gilberto teve sua partida lamentada por aquele seu “amigo” de Facebook ou “seguidor” de rede social que, duas semanas antes, na melhor das hipóteses o conhecia por ser “excêntrico”. Fenômeno igualmente comum aos ilustres, João Gilberto foi usado com viés político: a frase do Presidente serviu como combustível para todos os grandes veículos nacionais, do virtual ou do impresso.
De repente, João virou bandeira. João, que preferia o silêncio a qualquer palavra.
A frase do Presidente causou choque até mesmo em britânicos que, sabendo da importância de João, queriam apenas ouvir o que a maior autoridade do país teria a dizer sobre o grande responsável pela internacionalização da música nacional. O jornalista brasileiro Luis Barrucho, que participou de uma “mesa redonda” na Inglaterra, ficou na saia justa: “por que o presidente não homenageou João Gilberto?”, lhe perguntaram. “Não está claro”, respondeu Barrucho.
É mesmo uma dúvida, beirando a consternação. Não podemos nos dizer surpreendidos, porém: eu mesmo já escrevi neste espaço, meses atrás, sobre a relação de desprezo que o brasileiro tem com o conhecimento: aquilo que não é do seu dia a dia, do seu apreço, da sua vontade, do seu feitio, não lhe interessa: não existe, aliás. Logo, a grandeza de João foi reduzida à sua fama, para o presidente – brasileiro até demais.
A frase, reproduzida em todos os veículos que se pode imaginar, dos sites e blogs mais autodeclarados de esquerda aos principais portais de notícias do país, era rigorosamente a mesma, ipsis litteris: “(Era) Uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá ok?”. Assim, sem aumentar nem diminuir nada.
Intrigado, fui procurando outras versões da notícia. Digitei “João Gilberto Bolsonaro pessoa conhecida”. “Esse ‘tá ok?’ é usado naqueles sketches de humor, caricato total”, eu pensava enquanto fazia a busca. Até que achei uma diferente. Uma única. A fonte? O periódico carioca O Globo: “Lamento. É uma pessoa conhecida, lamento. Meus sentimentos à família”.
Quanta diferença! Claro, ainda segue abaixo do esperado, abaixo do merecido por João. Mas era muito melhor do que o que vinha sendo divulgado. Como imaginei, o famigerado “tá ok?” não existia. Do contrário, havia o verbo lamentar, na primeira pessoa, duas vezes. O que aconteceu, então? É que, além d’O Globo, a outra fonte era… Folha de S. Paulo. Todas as notícias – inclusive a da BBC – citam o diário paulistano como fonte primária. Eureka!
Bolsonaro, se soubesse quem foi Noel, poderia fazer a vez de João e cantar: “Pra que mentir tanto assim, se tu sabes que eu sei que tu não gostas de mim?”.