Escrever sobre si mesmo é um recurso literário bastante utilizado pelos escritores. Alguns o fazem com rara habilidade. Outros, nem tanto. Não citarei nomes. Deixarei que o leitor se lance à aventura de encontrá-los. Primeira regrinha básica do finado tio Ernie: não entregue tudo mastigadinho ao leitor. Sugira ao invés de afirmar, eis a segunda. E não confunda ação com movimento, a terceira. Por falar em regras…
O Jorge Robert era daqueles sujeitos que detestavam regras. Formas simétricas, também. Ficou muito feliz quando na escola aprendeu que havia outras formas além do quadrado e do redondo. Na juventude, ficou fascinado com a forma esotrópica da vida e as possibilidades que ela lhe oferecia.
Chegou a estudar um pouco sobre Geometria Sagrada. Mas, de fato, a sua maior satisfação foi quando aprendeu que as linhas não precisam necessariamente convergirem para o mesmo ponto. As da vida também. Muitas vezes, duas vidas parecem caminhar juntas durante muito tempo, em perfeita harmonia, mas, por fim, acabam não convergindo para o mesmo ponto.
Jorge Robert detestava o seu nome. Não sabia se havia sido erro do cartório que o registrara. Nunca se sentira à vontade para questionar os pais sobre isso. A mãe, certamente, não teria resposta, diria que Jorge Robert era um nome lindo, e o pai, certamente, arranjaria, sim, uma resposta, aquela que lhe parecesse mais convincente para as circunstâncias do momento.
Jorge Robert tinha sobre o pai a opinião que seria um exímio futebolista, devido sua habilidade nata para driblar situações e pessoas. Mas nunca tivera a ousadia para afirmar isso diante do pai. Mas, reservadamente, para a mãe e, na intimidade que o ambiente de um bar noturno proporciona, referia-se ao pai como Mané Garrincha. E o fazia sorrindo. E não sabia exatamente se nesse sorriso havia sinceridade ou mera ironia a qual não conseguia nunca resistir.
A primeira redação que Jorge Robert escreveu na escola, aos 11 anos, usou a morte como tema sem mencionar a palavra uma única vez. E diante do questionamento da professora, sobre onde estava a morte naquela redação, que lhe parecia até que bem escrita, mas um tanto confusa, e que fugia à regra do começo, meio e fim, Jorge Robert então respondeu: “A morte, professora, está no amanhã. E eu vivo no hoje. E eu escrevo sobre o que vivo. Porque não sei escrever de outra forma”. A quarta regrinha do finado tio Ernie: “O autor escreve sobre o que conhece bastante bem”.
Mas, num lance de ousadia, quando certa vez, já no adiantado da noite, já bem adulto, beirando a perigosa casa decimal dos cinquenta, Jorge Robert, fugindo à regra que naturalmente impusera a si mesmo, resolveu dar a sua contribuição definitiva à criatividade humana.
Havia tomado duas doses generosas de um estimulante Chivas Regal, fumado dois cigarros e lido poemas de Herberto. Os olhos já ardiam, as costas doendo e os dedos da mão direita com câimbras que iam e vinham a cada cinco minutos, mas estava decidido que não levantaria daquela bendita cadeira enquanto não encontrasse a primeira frase, a mais verdadeira possível.
Durante a tarde, já em busca da maldita frase, havia descascado laranjas, caminhado pelas ruas do bairro, conversado com o jornaleiro, o vendedor da casa de parafusos, o dono do bar da Rua 9, já tinha ido visitar a dona Dalva, já sonhara com o abraço apertado de 8 segundos da loira bonita da pequena loja do centro da cidade, e nas situações prazerosas da vida, onde esse abraço poderia levá-lo, houvesse coragem da sua parte para dizer a ela tudo o que… Não. Faltava-lhe a coragem. Sempre. Ao menos para isso.
Enfim, onde estava a primeira frase, a mais verdadeira possível? Onde estava? Não estava. O que era até então, apenas sintomático, passara a ser regra, porque as ideias, agora que já beirava a perigosa casa decimal dos cinquenta para a contagem humana da vida, lhe faltavam.
Então, decidiu que daria finalmente a sua contribuição à criatividade humana e inventaria a sua própria regra. A primeira regra de Jorge Robert, que ele a definiu assim: Observe as pessoas e as coisas como são, e tente imaginá-las como poderiam ter sido. Foi assim que teve coragem para resolver o maior dilema de sua vida: escrever uma carta de amor à loira bonita da pequena loja do centro da cidade, na qual dizia: “Hoje pela manhã, havia dois passarinhos na fiação do poste, em frente de casa. Eles certamente desconheciam a palavra amor. Mas estavam juntos, e felizes”.