Foi só depois que o caminhão da coleta de lixo passou por si naquela manhã, ainda coberta pela cerração, que percebeu a presença do cachorro a acompanhá-lo. Ressabiado, o pequeno cãozinho mantinha uma distância segura, prevenindo-se, talvez, quanto a uma possível reprimenda. Era sempre visto nos arredores do restaurante, mas, talvez por causa de sua aparência nada agradável e sua cara de “pidão”, jamais despertara o interesse daqueles que o conheciam. O cãozinho ajudava a compor a paisagem do local decadente daquela área central da cidade, próxima a antiga Estação Ferroviária, tanto quanto o senhor velhinho que passava os dias sentado na calçada, esperando por alguma moedinha de uma alma generosa que cruzasse seu caminho. Entre eles, Franco Di Lívio, 44 anos, porte ereto, mãos calejadas de tanto trabalho e sofrimento. E dono do restaurante, que havia deixado minutos antes despedindo-se de seus funcionários.
Agora voltava para casa, a pé, como de costume. Mas acompanhado de um cãozinho que tentava sem sucesso chamar a sua atenção. Olhou então para trás e pensou ralhar o pobre animal, enxotá-lo, fazê-lo, tomado de susto, desistir de segui-lo. Mas então percebeu que poderia quem sabe haver alguma cumplicidade entre eles. Eram dois solitários. E tinha os olhares perdidos como que à procura de esperança.
Di Lívio morava ali perto. Em um apartamento minúsculo, caindo aos pedaços, em cujos corredores cruzava-se com prostitutas, bicheiros e traficantes. E eram todos educados. Davam-lhe bom dia sorrindo. Como neto de italiano Franco Di Lívio prezava valores como respeito e generosidade. Filho de um condenado por assalto a banco, morto na prisão, e de uma rameira, daquelas que não valem nada mesmo, morta, graças ao Bom Deus, ao dar à luz. Palavras de seu avó, que o criara. O velho e bom Enrico, homem muito digno, trabalhador, honesto, ferroviário e católico praticante. E pai da “maladeta”, que ao menos servira para lhe dar um neto. Um menino tímido, mas, muito forte. Feições muito boas e educado. Calmo, até que lhe tirassem do sério. E assim como o avô, forjado nas duras lides diárias da ferrovia, onde começara como foguista, passar a limpador de máquina e à maquinista. Por mérito. Sem bajular a ninguém. Assim como o avô que nunca se juntara em segundas núpcias, porque temia que lhe estragassem o neto com mimos desnecessários que apenas enfraquem a natureza humana. Franco crescera um rapaz bonito, atraente e forte. E quando o velho Enrico percebeu que sua missão estava cumprida esticou as botas sem avisar, naquele mesmo apartamento, que desde então, passara a pertencer ao neto. Por isso é que toda vez que passava por aquela porta, Franco procurava com os olhos a presença do avô, que saberia não encontrar. Mas era como se pudesse. A tola esperança era a única fraqueza a que se admitia. Porque esta, nem mesmo o avô conseguira suplantar. Dizia que a esperança é o fraco dos homens. Franco Di Lívio, por vezes, e apenas por vezes, se via tentado a pensar do mesmo modo.
Tirou o casaco úmido pela cerração e o atirou sobre o sofá. Foi a cozinha e procurou no forninho do velho fogão alguma sobra de comida com a qual pudesse alimentar o pobre cãozinho, admitido finalmente ao aconchego do lar, e de maneira definitiva.
Passaram-se os dias e o cãozinho ganhara nome e uma nova aparência. Agora chamava-se Lorenzo. Bendigo Lorenzo. Vingança? Talvez. Lorenzo fora o sujeito que se dizia seu amigo e lhe dera um calote, após um trabalho muito duro e que lhe custara tempo, paciência e esforço.
Talvez, agora, com a companhia de Lorenzo, poderia finalmente abandonar as idas ao cinema, para assistir àqueles filmes estúpidos, sem pé nem cabeça, coisa da modernidade. Os livros de Dostoiévski ficariam mofando na estante da minúscula sala daquele apartamento. Mas que sujeito deprimente esse Dostoiévski, finalmente, sentia-se à vontade para poder admitir. Homem fraco, criador de personagens fracos. Tolstói ao menos tivera mais dignidade. Admitira ao fim da vida seus limites e suas culpas.
Não à toa, o avô, que não era nada afeito à leitura, lhe insistia para ler Mario Puzo. Raymond Chandler, quiçá. Vá bene! Ora, ora! Todos maledetos. Mentirosos. Como todo bom escritor.
Em uma de suas idas ao Gabinete de Leitura, devidamente acompanhado de Lorenzo, Franco Di Lívio fora apresentado a Bukowski. Aí sim, tudo a ver. Encontrara um autor que falava sua língua. Desbocado, bronco, devasso, poeta. E pensar que, minutos antes, tivera em suas mãos, Bouvard e Pecuchet. Queira me perdoar, monsieur Flaubert!
Chegara a idade e o dia de botar a espelunca do restaurante à venda. O primeiro interessado, lhe dissera com muito pouco caso, que, aquilo, de fato, não era um restaurante, quando muito, uma pensão. Caindo aos pedaços, inclusive. Resiliente e resignado, Franco Di Lívio concordou. Eco, filho da putana. Faça a sua oferta. Duas horas depois, e duas ou três garrafas de vinho genuíno, negócio fechado.
Era bom mesmo se livrar daquela espelunca antes que fosse fechada pelas autoridades. Não pela qualidade da comida, muito boa por sinal, mas, pelas paredes trincadas, o teto rachado, o assoalho solto, a pintura descascada. E mesmo assim, bem frequentado. Porque a comida era boa e a cozinha, limpa. Ah, também havia um guarda, muito hábil e persistente pra correr atrás de certos caloteiros: Lorenzo. Mas, este, não fazia parte do pacote negociado de compra e venda do restaurante. Continuaria na companhia de Franco Di Lívio. Pelo menos até que este encontrasse novamente o avô sentado na poltrona da sala, a esperá-lo.
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: John Hart-AP/ Imagem ilustrativa