Os ensinamentos do eremita ao professor doutor abriram caminhos para a ciência contemporânea a partir de tese publicada e disponível na biblioteca na UNESP de Rio Claro. Em sua dedicatória da obra, o professor R.G. Lintz destaca: “Dedico [este livro] ao Eremita, cujas ideias tiveram um profundo impacto em minha formação filosófica.
Não fosse pelo manuscrito sobre suas ideias matemáticas que ele tão gentilmente me deu como presente e que guardo até hoje com especial carinho, eu estaria convencido de que tudo não passara de um sonho.
O livro
Assim, R.G. Lintz começa seu livro “História da Matemática”, volume I, 600 páginas, que pode ser localizado na biblioteca da UNESP local sob a referência 510.09, L 761h, 166 716. O citado eremita, morador de uma caverna no alto de montanhas, acolheu Lintz como discípulo durante alguns dias e o orientou exatamente naquilo que o cientista buscava: um eixo matemático para sua pesquisa. Expresso em forma filosófica, o conteúdo dos ensinamentos foi apresentado em diálogos.
Ao final, o eremita entregou ao matemático um pacote de manuscritos com detalhes sobre as reflexões feitas. Coube a Lintz e seus colaboradores, nos anos seguintes, a tradução e a ampliação do material em forma matemática e sua correspondente aplicação à física, com base em Cantor, Loria e Pauli. “Dificilmente eu poderia ter concebido tais ideias sem a colaboração daquele espírito tão profundo que nunca me contou sua origem e que misteriosamente desapareceu sem deixar traços de sua existência”, comenta o professor.
O começo
Segundo Lintz, tudo começou quando ele se preparava para escrever a história da matemática pela linha filosófica pretendida, mas não conseguia encontrar os conceitos. Entre aulas na UNESP de Rio Claro no Departamento de Matemática e Estatística, na Mc Master University, do Canadá, e palestras em faculdades americanas, ele já havia elaborado os elementos básicos.
Em busca de tranquilidade para avaliar o material redigido, certo dia resolveu seguir sozinho ao interior de Minas Gerais para acampar. Em uma pequena cidade, no convívio com moradores, chamou-lhe a atenção estranha referência sobre um eremita que vivia nas montanhas.
As pessoas falavam de um sábio sempre disposto a orientá-las sobre questões de saúde, alimentação e “até discosvoadores”. Para desencanto da população, há tempos ele havia se afastado do vilarejo, sem aparente motivo. Movido pela curiosidade, Lintz arriscou subir montanhas em procura da enigmática figura. Seguiu com seu material de acampamento e víveres.
O encontro
Depois de dois dias de caminhada acabou encontrando o eremita habitando uma das grutas do local e praticamente sobrevivendo de batatas e outras raízes. Lintz o descreve como velho, apoiando-se em um cajado, de barbas brancas até a cintura e usando uma espécie de túnica.
No contato direto inicial, vacilações. Superada a fase do primeiro diálogo, acabam ficando amigos, maneira pela qual o eremita prefere definir o tratamento entre eles, depois de dispensar qualquer referência à sua própria identidade.
Sempre ficou incógnito. Lintz apresenta-se como matemático e preocupado em ordenar seu material de pesquisa A declaração desperta imediato interesse do eremita, que, para surpresa de Lintz, declara-se discípulo de Spengler, justamente o filósofo central da pesquisa em questão. Mais ainda, o eremita diz ser um imigrante alemão desiludido do mundo após a Segunda Guerra.
O ensinamento
A partir dali, seguem-se dias em que o velho de túnica e cajado se aprofunda no tema pretendido pelo professor e ainda o presenteia com um pacote de manuscritos tratando do muito que iriam conversar na sequência. O contato entre ambos se repete entre batatas assadas na gruta ou caminhadas pelas proximidades, até o último passeio, durante por quase toda uma tarde.
O eremita
desaparece Na última noite, depois do eremita recolher-se à caverna, Lintz seguiu pela madrugada conferindo anotações na barraca. Até dormir. Tamanha foi sua surpresa ao notar na manhã seguinte que em nenhum lugar havia vestígio sequer da pessoa com a qual passara dias conversando! Desconsertado, Lintz busca pelo eremita em toda parte.
Sem sucesso. Suspeita-se vítima de alguma fantasia ou sonho, dúvida que logo se desfaz quando confirma, no interior da barraca, o pacote de manuscritos deixado pelo eremita. Tudo havia sido real.
O desaparecimento, no entanto, ganha dimensão extraordinária no ponto em que o professor enfatiza. “Não havia o menor traço dele! O curioso é que a caverna parecia nunca ter sido habitada, mas ali estava a pedra onde seu me sentara na manhã, muito embora as pedras onde costumava assar suas batatas ali estavam cobertas de musgo e sem o mais leve sinal de negrume pelo fogo! Não é possível!”
Testemunho
O professor sempre disse não haver encontrado resposta para o que aconteceu. Os fatos foram divulgados em forma de livro no início dos anos 1980. O mundo acadêmico manteve discrição quanto ao relato sobre o eremita.
Há certo constrangimento em tocar em assunto tão extraordinário. Lintz tornou-se professor emérito no Canadá. Seu nome é respeitado internacionalmente. Suas visitas a Rio Claro eram periódicas, para rever amigos e realizar palestras.
O conteúdo filosófico
O assunto tratado entre o professor e o eremita é uma densa reflexão filosófica sobre as civilizações grega, árabe e ocidental. O roteiro da conversa traça a trajetória da cultura nos últimos três mil anos. Com base no filósofo alemão Spengler, mas revendo Vico, Goethe, Hegel, Nietzsche, Marx e Toynbee, o trabalho contesta a visão tradicional que apresenta a história de forma progressiva e linear ao longo do tempo.
Ao contrário, garante que as expressões culturais, entre elas a religião, arte e ciências, são como organismos vivos em relação específica com sua época. A matemática, por exemplo, não seria absoluta como os números ou as ideias eternas propostas em Pitágoras e Platão. Seria não determinista. “Não existe uma matemática melhor que a outra, mas diferentes, relativas aos condicionamentos de seu tempo”, está no livro.
Civilizações
Conforme o texto, os conteúdos simbólicos dos gregos, por exemplo, têm a característica de compor um caráter estático e finito, o que plasticamente explicaria sua arquitetura e, na matemática, sua geometria. Os gregos não conheciam o zero e contavam as coisas de forma concreta, como uma pedra, duas pedras. De início não usavam frações. Os árabes, por sua vez, conseguiram criar a álgebra por constituírem uma civilização baseada na ideia de substância, do desconhecido e do sagrado.
O pensamento religioso influenciou o desenvolvimento numérico deles. Em particular, o zero, é original da Índia. Resultou daquela cultura, que, por influência religiosa, conseguiu desenvolver a ideia de vazio. Segundo o antigo pensamento hindu, somente com o esvaziamento da mente é possível libertar a alma para o paraíso.
Em sua matemática, a ideia ganhou a forma do número zero. No mundo atual, com suas características modernas, os conceitos de infinito, abstrato e movimento garantiram o desenvolvimento da matemática infinitesimal, voltada para uma cultura focada na máxima especialização. Vivemos hoje a cultural onde tudo é ponto. Sem dimensão. Digital.
Consequências
Disso tudo trata o ex-professor da UNESP em seu livro orientado pelo eremita. Nas últimas décadas, tais conteúdos abriram rumos que levam às ideias da chamada etnomatemática, ou seja, a matemática influenciada pela cultura. Esse ramo de estudo contesta a ideia tradicional de que a história seja linear e progressiva, como no positivismo e no marxismo.
Ao contrário, por ele prevalece a ideia da história por sequência em ciclos. Ou seja, as civilizações cumpririam fases de ascendência, estabilidade e declínio. Em tal quadro, o mundo moderno já estaria em irreversível declínio, o que explicaria a generalizada decadência cultural de hoje.
No processo por ciclos, a mudança do pensamento matemático ilustraria a última fase de uma civilização rumo à decadência. Para análise desses processos, segundo o autor, a chamada lógica formal, cartesiana ou mesmo da razão pura kantiana, seria insuficiente. O que leva à exigência instrumental de uma lógica “orgânica”, cuja principal característica estaria na abrangência da intuição.
Em traços elementares estas seriam as bases do livro de R.G. Lintz. Cabe ressaltar que hoje o tema já conta com consolidadas vertentes em consagradas pesquisas. Que antes não existiam. O autor, ao falar das consequências do estudo assinala, “essas ideias tiveram grande importância para o desenvolvimento posterior da matemática não determinista”.
Por J.R. Sant´Ana / Fotos: Divulgação