1º de maio de 1886, Dia do Trabalhador, e quem imaginaria que 135 anos depois, existiria não só o trabalho braçal ou intelectual, mas o trabalho remoto: um ambiente de trabalho muito diferente do cenário do século 19. O ‘home office’, como é mais conhecido, se mostrou uma realidade para uma parcela dos 80,2 milhões de ocupados e não afastados do trabalho, segundo dados divulgados, em fevereiro deste ano, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), através de um estudo sobre o trabalho remoto no país em tempos de Covid-19. A parcela corresponde a 7,3 milhões de pessoas (9,1%), que de acordo com o estudo, vêm apresentando queda desde novembro do ano passado.
Pouco a pouco, alguns profissionais têm retornado aos seus locais de trabalho. Mas, ainda assim, há aqueles que continuam trabalhando de forma remota, mesmo que seja uma minoria se adaptando a essa nova forma industrial para continuar se sustentando, mesmo que isto implique desafios como: uma fiscalização pronta a atender demandas trabalhistas, uma reconfiguração do ambiente de trabalho e, principalmente, uma possível implicação na saúde mental.
É HOME OFFICE, NÃO ‘BICO’
Milena Gomes, de 19 anos, é auxiliar de comércio exterior numa empresa do setor de importação e exportação de equipamentos de saúde, localizada na capital paulista. A jovem, que começou a trabalhar na empresa em fevereiro, conta que “da entrevista até o primeiro dia de trabalho” em home office, “tudo ocorreu remotamente”. “Me senti um tanto quanto deslocada. Senti falta de presença física, de ambiente de trabalho. Porém fui muito bem acolhida por toda a equipe”, conta sobre os primeiros dias.
A relação amistosa descrita por Milena, que segundo a própria não tem o quê reclamar, destoa, significativamente, do que acontecia em 1886 com os eventos marcantes em Chicago que serviriam como uma lembrança sobre a valorização do trabalhador. Diferente do cenário violento entre empregadores e empregados naquele tempo, assim descrito pela História, o emprego de Milena atende à regulamentação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e, mesmo que sem efeito de lei, até às recomendações do Ministério Público do Trabalho (MPT) sobre o trabalho remoto, através de nota técnica emitida em meados de setembro do ano passado. “Desde jornada de trabalho até benefícios em carteira. Há comunicação diária entre as equipes e acompanhamento com o RH. Nada nos afetou em relação a esses parâmetros”, revela.
DIREITOS E DEVERES
Pensando que o remoto remete à ideia de ‘longínquo’, o que pode gerar a ideia de fluidez no trabalho, quem garante a fiscalização para que se evite possíveis abusos e não voltemos a repetir o passado? Mais do que isso. É preciso entender que hoje as coisas também ficaram um pouco diferentes. Tratando-se de jornada de horas de trabalho – uma das principais reivindicações trabalhistas na história -, a advogada Verônica Jardim, de 34 anos, do escritório Horta & Jardim Advogados Associados, em Rio Claro, relata que na sua experiência, a depender do caso, tanto o empregador, quanto o empregado ‘podem ter culpa no cartório’, como o dito popular.
“O que a gente percebe é alguma falta de noção do cliente, que acaba chamando o funcionário em horários que não são compatíveis com a função dele. O funcionário estando em casa acaba respondendo as mensagens”, relata sobre a figura do empregador ao chamar o funcionário pelo WhatsApp, por exemplo. Em contrapartida, “muitas vezes o empregado se perde na rotina levantando mais tarde, fazendo um tempo de almoço maior, estendendo um pouco mais o lazer”, ressalta sobre o empregado no ambiente de trabalho remoto.
A advogada, portanto, recomenda que a orientação às empresas e trabalhadores seja de firmar “um contrato” que estabeleça acordo entre ambas as partes, a fim de evitar possíveis abusos. Dada a autonomia do trabalhador, então, Verônica salienta o interesse que o próprio funcionário pode ter “em continuar trabalhando porque vai ganhar uma comissão ou vai adiantar o trabalho do dia seguinte”, compensando para sair mais cedo depois. Fazer um acordo, de fato, parece ser a solução. Aliás, é mais fácil colocar pingos nos ‘is’ do que arrumar erros crassos depois.
“NÃO SOU A ÚNICA”
Se por um lado, Milena Gomes não parece ter com o que se preocupar em relação ao emprego, por outro, aparecem as desvantagens. “Sinto falta de companhias, principalmente. Ter um colega do lado pra soltar alguma piada. No home office nos tornamos dependentes da nossa própria companhia”, relata. Milena não é a única. Segundo um artigo de outubro de 2020, pelo portal da Fiocruz, a revista científica Journal of Medical Research publicou um estudo que apontava que sintomas de ansiedade e depressão afetavam 47,3% dos trabalhadores de serviços essenciais durante a pandemia de Covid-19, no Brasil e na Espanha. Apenas em território nacional, esse número ia para 55% de uma amostra de 2.842 brasileiros, sendo a maioria desses brasileiros composta por mulheres (72,2%), idade média de 39 anos, com curso universitário (56,5%) ou mestrado/doutorado (28,5%).
Não precisa ir muito longe para se descobrir artigos que apontem a relação do ‘home office’ e isolamento social a síndromes como Burnout, depressão, ansiedade e pânico. Para Valderez Marques, de 63 anos, psicóloga e especialista em saúde mental, o trabalho remoto deixa a desejar na “questão da sociabilidade”. “O que a gente tem visto é um grande número de pessoas com dificuldade até mesmo em se relacionar por acabarem ficando desacostumadas por estarem muito focadas em casa”, observa a psicóloga sobre a relação do trabalho em isolamento social.
A especialista, portanto, aponta a questão da reestruturação das terapias para atender à saúde mental. “Estamos fazendo terapias online, até para as pessoas ficarem melhor e pensarem melhor. De certo modo, essa terapia à distância acaba se tornando uma oportunidade para se cuidar”, avalia. Portanto, se por uma via, o ambiente ‘online’ pode ser nocivo, por outra, pode ser uma luz e uma oportunidade de tratamento e cuidados para pessoas como Milena, que descreve um sentimento de “se sentir improdutivo”, “de trabalho incompleto, como se não houvesse fim”.
“POR FIM…”
A indústria da automação e informação chegou e é um fato. Nossos trabalhadores braçais, lentamente, são substituídos. Nossos esforços intelectuais começam, pouco a pouco, a ser valorizados. E a indústria torna-se cada vez mais remota a partir da diminuição de custos. Por fim, o que vale é repensarmos sempre nossas relações de trabalho a partir de autores que já repensavam a seu tempo. Afinal, sobrevivemos e reproduzimos até aqui. Parar o processo é autodestrutivo. Continuar é uma dádiva. Não por acaso, é Dia do Trabalhador.
DATA
Desde o fim do século XIX, nos Estados Unidos, no Brasil e em vários outros países ocidentais, o dia 1º de maio é tido como o Dia do Trabalho. Tal data foi escolhida em razão de uma onda de manifestações e conflitos violentos que se desencadeou a partir de uma greve geral. Essa greve paralisou os parques industriais da cidade de Chicago (EUA), no dia 1º de maio de 1886.
Por Samuel Chagas / Foto: Divulgação