Cantos Diversos
Canto dos Bêbados]
O cavaleiro
Na via, o bêbado
… e o negro, todo sujo, todo torto,
tropeçou, bêbado, na guia da rua.
O mundo girou na cabeça.
Caiu. Ergueu-se.
Trôpego, tropeçou nos trapos,
nos estrepes da alma,
nos estribos do corpo,
nos estragos da vida,
nos estrumes da rua,
nas estrias da pobreza,
nas estradas da memória,
nas estranhas marcas do ser,
nas entranhas do anoitecer.
Caiu na via como navio sem porto.
Sentiu gosto quente de sangue na boca.
Quis lançar.
Não teve força.
O ar começou a rarear… o ar a
ra
re
ar…
E, ali, ficou estendido na via: morto.
As sombras
Boêmios vagabundos poetas desconheci-dos
transitam nas avenidas como sombras.
Prostitutas pintadas cansadas
desfilam sob as luzes das boates
como sombras.
Marginais políticos ladrões
homens de histórias mentirosas
caminham em meio ao fumo
como sombras.
Padres pastores coletores de dízimos
angariam fortunas dos ingênuos
como sombras.
Mocinhas iludidas sonhadoras
desafiam o mundo noturno
indo em direção às sombras.
Canto de velhos
À janela
Casa velha
de velha porta
tem à janela
uma moça velha
de boca torta.
E que inveja tem
espelhada no olhar.
É todo o desdém
por quem é mais bela.
E é por ela também.
Murmura blasfêmias,
emite grunhidos,
gemidos de sofrimento
entre gestos contidos
e perdidos pensamentos.
Velha moça
que bela queria ser
expressa-se de boca torta
à janela da casa velha
com o olhar já perdido
com o olhar já de morta.
As marcas
Velha.
Tão velha.
Tão velha essa velha.
De passado antigo.
De passado vai passando.
Passo a passo.
Lenta perna.
Pesado braço.
Cansado corpo.
De máscara enrugada.
Sem destino.
De destino cumprido.
Longa existência, já cansada.
Vendo-a,
já se sente envelhecido.
Sentindo-a,
já se vê de cara marcada.
De tão velha essa velha.
O silêncio dos esquecidos
A velha não dizia palavra.
Tinha aprendido
o silencio dos esquecidos.
O hálito era de anos.
O olhar, vazio de lugares.
Não ria. Não chorava.
Só levava o copo à boca.
E sorvia tudo
como se buscasse por vida,
como se buscasse por morte.
E, ali, ficava em silêncio
como objeto esquecido.
A velha sem palavras.
A velha lavadeira
No tanque,
esfregando roupas alheias,
a velha canta canções
imaginárias de amor.
É a velha lavadeira
que tem um sorriso triste
e um ardido cheiro de suor.
No tanque,
esfrega
as suas poucas roupas,
que, em breve, se tornarão alheias,
embora puídas e sem cor.
Pobre lavadeira de sorriso triste
e ardido cheiro de suor.