Bilhetes de um tempo
[XVIII]
Na época de Natal, a casa de minha avó ficava cheia.
No dia 24, o seu Camilo, pai de minha tia Stella, e casado na fé com minha avó, ia à Missa do Galo. Depois, fazia-se ceia e, no dia seguinte, no almoço de Natal, dava-se a troca de presentes entre as crianças. Mesa fartíssima, com assados, massas, tortas, frutas, sobremesas, bebidas (vinho, cerveja, refrigerantes e sangria).
Lá vinham todos. Os meus pais, os pais de meus primos, o Luís Bicudo (então namorado de minha tia Stela), as crianças, o tio Chico (irmão de minha avó e ex-ponta direita do Velo Clube) e, naturalmente, a Lica, essa figura extraordinária. E para ela fiz este poema:
– Lica – Maria Ferreira, prima de minha vó, muda e surda, não tinha irmãos, não tinha ganhos, não tinha amores, não tinha sonhos, não tinha estória.
Sem mocidade, sempre foi a agregada de obediência servil.
Limpava as panelas, as penas das aves tudo com água quente, sem demonstrar dor.
No fogão, cozinhava todos os dias.
Sem reclamar.
Recebia como paga o carinho de minha avó, Bela.
Tinha comida e o leito.
O que poderia querer mais?
Tempos difíceis.
Mas, havia fartura à mesa.
Pobre Lica de tantas virtudes.
Morreu pobre, pés inchados, vestida de roupas simples.
Não deixou as receitas dos pratos saborosos que fazia e que só a infância sabia temperar.
Pobre Lica, a virtuosa e santa Lica, Um dia descansou em paz.
Sem herança e sem queixas.
Pobre Lica.
Um tesouro guardado na terra.
E esse tempo também se pôs por guardado no cofre de tudo o que já passou.
[XIX]
E por uma ironia do destino, minha avó Bela, que detestava a mentira, faleceu no dia 31 de março e foi enterrada no dia 1º de abril. E, também, por ironia, o seu falecimento ocorreu na data de aniversário de prima Varda. Isso foi em 1961.
O corpo foi velado na própria casa. Naqueles dias não se usava o velório municipal.
Lembro-me do cortejo fúnebre de minha avó. A avenida 7 ficou intransitável por três quarteirões, apinhados de pessoas (homens de terno e chapéu, mulheres de roupas sóbrias e sombrinhas). E à frente o caminhão funerário. Longo percurso percorrido em silêncio obsequioso. Isso foi um fato extraordinário.
Minha avó era querida e amada por muita gente. Dela, pouca gente se lembra, agora. As pessoas, com o tempo, vão sendo enterradas nas deslembranças das histórias encobertas de outras pessoas.
[XX]
Deixo mais três bilhetes dessa época. Meu pai sempre foi muito habilidoso pra consertar as coisas. Mesmo sem ter as ferramentas certas, ele improvisava e conseguia consertar o que estava quebrado ou com defeito.
Certo manhã, ele me entregou uma caneta ‘Sheaffer’ e me disse: “Olha, eu não estou conseguindo tirar a tampa da caneta. Você pode fazer isso para mim?”. ‘Sim, claro’, respondi. Não tive dúvida. Peguei um martelo e dei uma pancada na tampa da caneta, que se partiu em vários pedaços. E entreguei para o meu pai parte que sobrou. Então ele me disse – ‘É assim que você tira tampa de canesta?’. Fiquei sem dar resposta.
Em outra ocasião, ele me disse que iria me ensinar como se mata uma galinha. Fiquei vendo. Ele pegou um cabo de vassoura e colocou no pescoço da ave. Puxou-a para cima; a galinha estrebuchou e, depois, de um tempo, estava morta.
‘Agora, é a sua vez’, disse-me. Todo jovem quer mostrar força e não habilidade. Pus o pau de vassoura no pescoço da vítima e puxei. Pela força que fiz, o corpo da galinha veio, e a cabeça dela ficou no chão.
Era sangue para todos os lados, porque ela se convulsionava. E meu pai, em seguida, emendou: ‘É assim que você mata galinha?’. Outra vez, fiquei sem resposta. Porém, nunca mais matei frango. Aquilo foi demais para mim.
Meu pai, com a paciência que tinha, quis me ensinar a corta lenha. Pegou o machado, colocou a madeira de jeito e, com uma pancada, cortou-a em duas partes. Deu-me o machado e me pediu para colocar a madeira de jeito. Coloquei. Bati na lenha. O machado escapou de minhas mãos. A madeira ‘voou’, sem estar rachada.
E meu pai me falou – ‘É assim que você corta madeira?’. Não tive resposta. A minha falta de habilidade era patente. Resolvi estudar. E isso, de certo modo, deu certo.