Bilhetes de um tempo
[XII]
Desse tempo, escrevi um poema, que, adiante transcrevo:
Azul, minha cidade, universo de cenas machadianas. As ruas contavam histórias diárias.
Lá, na memória, a menina, à janela da casa grande, guardava-se em sonhos.
O velho Joanim, ignorante, Dizia que o mundo não girava porque ele não ficava tonto.
Zezinho louco, que metia medo nos moleques, teve vida curta.
Morto por ocultas mãos traiçoeiras.
E o seu Zé, sujeito nervoso, mas fraco, defendido pela mulher valente, que tocou, certo dia, a vassouradas do bar, o bêbado inconveniente.
Pipas coloriam os céus.
E as bolinhas de gude, as ruas de terra.
Os piões rodavam nas mãos dos meninos e nas celas riscadas na terra da rua.
Zarabatanas improvisadas espetavam canudinhos de papel nas plantas dos vasos das áreas limpas das casas de mulheres nervosas.
Carrinhos de rolimãs de sonhadas viagens nas ruas de asfalto.
Ali, passavam assustadoras boiadas.
Corpos volumosos dos animais de chifres ameaçadores, seguindo em marcha, levantando poeira, seguindo o sino da vaca madrinha.
Vaqueiros pobres tangiam a manada em direção ao curral.
E tocavam o berrante.
Esse grito dolorido que saía do chifre do boi.
Ali, também passavam os trabalhadores sem sindicatos.
Donas de casa saíam à rua de terra batida.
Compravam deles de tudo um pouco.
Do agueiro a água contida no tonel de madeira puxado por duas grandes mulas.
Da grande torneira dourada jorrava o líquido.
E os potes de barro se enchiam de água fresca.
Do barateiro, alegria do bairro, vinha a loja de quinquilharia.
Agulhas, dedal, linhas, tesouras.
Outras coisas e outras coisinhas mais.
Coisinhas coloridas.
E o condutor da carrocinha, gordo e sorridente, carregava os tesouros das senhorinhas.
Do bucheiro, perseguido por felizes cães vadios e moscas indesejáveis, vinham os miúdos do boi:
Nunca gostei de fígado nem de miolo nem de rim.
Comia de tudo o meu irmão.
Que paladar!
Do doceiro, o quebra-queixo, que fazia a molecada silenciar.
Do leiteiro, o leite gelado.
Minha mãe dava meio litro pra cada filho.
Como era bom beber naquela garrafinha de vidro.
Época em que não havia geladeira em casa.
Do padeiro, os pães quentes, as broas, os pães doces.
Do peixeiro, um senhor branco de pescoço vermelho, como de peru, a sardinha, o bagre e o cascudo frescos.
O cheiro tomava conta do lugar.
E os mosquitos que, acompanhavam o bucheiro, agora voltavam pra ficar com o homem dos peixes.
Do sorveteiro, pobre Tarzan, grande e doente, os picolés de limão e abacaxi, coco e chocolate.
O seu grito ainda se ouve em ecos distantes.
Do verdureiro as frutas e verduras frescas das hortas.
E o carregador de ovos, de baú grande às costas, cheio de palha-de-arroz.
Que força tinha aquele pobre coitado!
Vencia distâncias sob o sol e a chuva.
Esse universo, aos poucos, foi se apagando.
Dos ambulantes, parece-me, só sobrou o sorveteiro.
Não o Tarzan, pobre coitado, E passa pela rua sem ser perseguido por aquelas pobres crianças pobres.
A casa, onde eu morava, continua lá, já velha e com trincas.
Vem à minha lembrança a cachorra Fangue.
Tão nobre que morreu em silêncio.
Vadiávamos na rua: eu, meu irmão e ela.
Aquela rua despareceu. Está asfaltada.
As carroças daqueles ambulantes por ali não passam mais.
E as crianças, hoje, se internam nas casas gradeadas.
Aquele universo, aos poucos, foi-se apagando.
Não há mais pião, bolinha de gude, o maranhão azul.
Perdeu-se a poesia de brincar na rua de terra.
Perdeu-se a terra.
Perdeu-se a rua.