Bilhetes de um tempo
[XXVIII-b]
É dessa época o poema que escrevi: O Boneco”, que adiante reproduzo: No canto frio de um boteco/a triste expressão de um boineco.// Bebe do copo a bebida/ buscando por falsa alegria./Mas engole dura melancolia/ que mais dura torna a vida.// Bebe mais ainda para entorpecer/ o que não consegue mais sentir./ Bêbado, sem saber, passa a rir./ E a chorar. E a deixar de ser.// No canto triste de um boteco/ a triste expressão de um boneco.
Vem também à minha lembrança a cena em que me vi envolvido sem necessidade alguma. Estava desfrutando de uma metade de um dos deliciosos sanduíches de pernil do seu Henrique, quando um caboclo atrevido me disse que iria pegar a outra metade. Disse-lhe:-Meu amigo, você não tome essa liberdade”. (Certamente, não disse essa frase no modo protocolar. Sem dúvida alguma, eu disse de modo mais pesado. Mas, aqui, estou minimizando o confronto).
O infrator falou que iria chamar o Nhão, um negro de quase dois metros de altura, para resolver aquele impasse que aquele folgado e inseguro ser provocou.
Ele foi falar com o Nhão. O grande Nhão olhou pra mim e falou: -Ignore. Não precisou mais. Continuei a comer o meu sanduíche de pernil, o melhor que poderia haver em Rio Claro e em toda vida. (Uma coisa eu digo: se você frequenta a noite, tenha amigos).
Segue outro caso. No bar do seu Henrique as cenas teatrais eram constantes.
Quando tive um “affair” com a Cristina Gurgel, conheci o irmão dela, Fernando, garoto gentilíssimo. E o levei ao bar do seu Henrique. A noite ia calma como sempre, à exceção do caso do japonês acima. Chegou lá um egresso da cadeia, fato esse que ninguém sabia. E ficou ali à mesa, sempre sorrindo, bebendo a cervejinha gelada. Não falava nada. Só prestava atenção. O Fernando tocava o violão, quando esse cara pediu licença para o meu amigo para lhe emprestar o violão. O Fernando consentiu.
O “criolo” pegou o inatrumento e, invertendo-o, começou a tirar músicas, servindo-se inversamente das mãos. E aquilo impressionou a todos nós. Encerrada a execução e satisfeitos de sanduíche, cerveja e refrigerantes, fomos embora. Sei que o Fernando, que era um cara muito legal, gostou daquela noite. Às vezes, o garoto rico precisa ver de perto o talento do menino pobre para se democratizar.
Mais um caso. Sabidamente, nunca consegui participar do canto orfeônico da professora Neusa, muito menos no da professora Heloisa Marasca, autora do Hino de Rio Claro tão pouco divulgado. Porque eu era muito desafinado. Isso se mostra correto ainda dizer.
Certa vez, estava no ensaio da escola de samba e comecei a tocar uma caixinha de fósforo. Um deles, gente do samba, disse: “Não toca não. Tá fora do compasso”. E aí eu me lembrei: as minhas professoras de música tinham razão, não nasci para a música. Mas quem me reprovou foi um crioulo que não tinha formação musical, apensas instinto. Quer mais que isso? Nem isso eu tinha. Passei a ficar na arquibancada. E não me arrependo.
Talvez, por último, revelo a história do Paulão. Esse era negro, magro, sorridente e em paz com a vida, era meu amigo. Eu podia não cantar, mas dançar eu achava que dançava. E o Paulão, que integrava os Tamoios, e o pessoal do José do Patrocínio, sabia que eu tinha o lado negro do samba. Isso quer dizer muito pouco para quem era branco, porém se mostrava muito para quem queria sambar sendo quem era eu, um branco metido a besta.
Eu estava na Pauliber, uma sorveteria da avenida 3, em frente ao Zoega, e vi o Paulão acompanhado de amigos meus ir com eles para um lugar atrás da confeitaria e lá dmoraram um tempo. Quando voltaram, eu falei para o Paulão: – Qual é, meu amigo? Você não me convida também? Sorrindo, ele disse: “Amigo, você não é desse grupo. Depois de um tempo, soube que o Paulão era traficante. Vendia maconha para a rapaziada. Digo sem medo de errar:- O Paulão foi meu anjo da guarda. Obrigado, Paulão. Você me salvou. É verdade que para muitos moleques e incautos o Paulão foi um demônio. Não estou aqui para julgar. A vida é assim: luz e sombra.