Bilhetes de um tempo
XXVIII
Muitas são as lembranças que me ficaram desse tempo mágico de uma Rio Claro mágica.
Não consigo falar de todas, mas dou alguns exemplos.
O primeiro é este: Rio Claro era a minha San Francisco, cantada por Scott McKenzie. Aqui, as meninas maravilhosas de sorriso fácil alegravam as ruas e avenidas da cidade, enfeitando a Praça da Liberdade e o Jardim Público. Eram as alunas do Colégio Puríssimo e do Ribeiro. Gente de todas as classes que convivia entre si na boa expressão da palavra. E vinham com o uniforme dos colégios, orgulho dos alunos em geral.
Naquela época, eu jamais deixaria Rio Claro para estar em outro lugar. Ali, encontravam-se jovens de muita beleza e espontaneidade. Poucos vinham com dinheiro no bolso. Mas muitos se exibiam com sorriso no rosto. Eram os anos 60.
Mas, me parece, não se vivia como os hippies, do paz e amor, embora sonhássemos com a liberdade. E isso era bastante estreito, mesmo estando nós na Praça da Liberdade.
O segundo, eu revelo agora.
Naquela época, em que havia os encontros no GG, as brincadeiras dançantes, eu tive a honra de dançar várias vezes com a Eliane, namorada do Vail, naquele salão imenso, ao som da música “A Taste of Honey”, tocada por Herb Alpert and Tijuana Brass. Perdoem-me a falta de modéstia. Ninguém dançou aquela música melhor do que nós. Disso tenho certeza. Até hoje me vejo rodopiando com ela, tão leve, tão expressiva, no salão maravilhoso do clube rio-clarense. É verdade que o mérito foi dela. Eliane. Isso é verdade. Mas, se eu tive essa sorte, por que não dizê-la?
O terceiro vai aqui descrito.
O Vail era namorado da Eliane. E nós tínhamos o costume de ir em busca de rosas nos jardins das casas de muros baixos. No jardim da frente daquelas casas quietas, já que era de madrugada e os donos dormiam, furtávamos as rosas, as mais belas, e ele as ofertava para a Eliane, deixando-as na janela da casa da namorada. Essa confissão não define a prática como um furto. Simplesmente, houve contribuição do jardim para o enamorado homenagear a namorada. Valeu, Vail.
O outro caso vem pregado no bar do seu Henrique, que ficava localizado na rua 1 com a avenida 8.
Nunca houve, nem haverá, ninguém com o talento do seu Henrique para receber as pessoas no seu bar. Eu nunca vi esse senhor triste ou cansado. Sempre disposto e, com alegria, atendia a todos. E não havia abusos. Ele não era uma pessoa violenta, mas empunha respeito. O que será que aconteceu com o bar do seu Henrique?
Não me refiro ao bar atuando durante o dia, estou falando do bar durante a noite.
Lá iam universitários, operários, negociantes, aposentados e os perdidos na noirte, como diria Plínio Marcos.
Ocorreu de estar com o Jaime Leitão em uma dessas madrugadas teatrais. Sem dúvida, falávamos de mulheres, poesia, política e fofocas.
Da mesa em que estávamos sentados, vi seu Camilo, padrasto da minha mãe, acompanhado de meu primo Luís Cláudio, passando na rua 1. Iam com pressa. Chamei por eles. Ouvi de meu primo que a Marina, irmã do seu Camilo, havia morrido. Peguei meu carro e fomos todos pra lá, no endereço da morta.
Chegando lá, a defunta estava, pequenina, em uma cama que a tornava menor ainda. Magrinha, sem os adereços que se colocam no caixão.
Nesse momento disse para o Jaime: “Aqui cessa toda a nossa discussão. A morte é o fim de tudo”. Bem. Não sei se disse isso porque o bar ficou fora dessa realidade.
Outra cena que ocorreu no bar do seu Henrique foi a seguinte: estava lá um bêbado que aceitou o desafio de beber três doses de pinga pagas por um japonês. Note-se: ele já se mostrava embriagado. Tomou a primeira dose, deixando escapar o líquido pelos cantos da boca. Aguentou-se no banquinho em que se encontrava. Balançou, mas não caiu. O japonês, acompanhado de outro indivíduo, tornou a incentivar vítima. E todo mundo olhando, inclusive eu. O bêbado, porque assim estava, pegou o segundo copo cheio de aguardente e tomou em uma só talagada. Todos ficaram olhando o infeliz. Como árvore cerrada, ele, que estava com os pés presos no banquinho, começou a ir em direção ao chão. Não deu para segurar. O coitado caiu de cara no chão e ficou. Aí começou o corre-corre. O seu Henrique, apreensivo, mandou chamar a polícia. O japonês e o amigo deram no pé. E lá ficou o infeliz, deitado, dormindo como se estivesse anestesiado. Passados um ou dois tempos, chegou a polícia, mas o bêbado, por um mistério que não sei, não estava mais lá. Certamente, amigos o levaram do bar para casa. Mas, no dia seguinte, ele viu a nova cicatriz da queda.