Desacompanhado de familiares e amigos mais próximos Licurgo Bittencourt baixou à sepultara no dia 19 de fevereiro de 1939 no ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Era o que iria escrever mais tarde o seu biógrafo desautorizado. Homem de hábitos comedidos, Licurgo tivera uma infância peculiar. Fora criado por um tio distante e interesseiro, desde que os pais haviam morrido em um trágico acidente automobilístico, no tempo em que as rodovias ainda não eram asfaltadas. Caíram despenhadeiro abaixo e se espatifaram de tal maneira que fora difícil identificar os corpos. O pai, dono de indústria cervejeira de grande aceitação no mercado consumidor. A mãe, herdeira de uma das maiores heranças da província; pais e avós barões do café. Licurgo tinha apenas 7 anos quando se vira só no mundo. E a vida que lhe parecia tão generosa lhe pregara tão cedo a primeira peça. Criado pelo tio, sovina e cheio de ideias mirabolantes, frequentara as melhores escolas, inclusive, no exterior. Conhecera Portugal, Alemanha e Itália e, se pudesse, para cá não voltaria jamais. Os negócios da família estavam todavia no Brasil e como herdeiro legítimo e único cabia a Licurgo administrá-los, assim que tivesse idade e condições para tanto. Mas, primeiro, os estudos. E foram anos difíceis, porque seu raciocínio lento e sua falta de perspicácia não indicavam que seria no futuro um exímio administrador. Fora necessário a intervenção de amigos de seu tio, bem posicionados na vida, pessoas influentes e com poder de decisão, para que as arestas do caminho árduo fossem aparadas e Licurgo vencesse sem mérito algum essa etapa importante e decisiva na vida de um ser humano: a formação.
Ao assumir os negócios da família, com o respaldo do tio, sempre atento aos seus movimentos e tomada de decisões, Licurgo surpreendera aqueles que colocavam em dúvida o seu futuro. Saíra-se muito bem. Não apenas preservara o patrimônio deixado pelo pai, mas, ampliara-o substancialmente fazendo parcerias e novos investimentos, alguns que, causaram calafrios no tio sempre pragmático e pouco visionário, mas que, com o tempo, se demonstraram bastante rentáveis, para a alegria de todos, inclusive, para os acionistas. Passaram-se os anos na vida de Licurgo Bitencourt, sem que o caminho que escolhera, lhe impusesse dificuldades e desagradáveis surpresas. Até que…
Fora em uma manhã ensolarada, enquanto passeava com sua dócil cachorrinha, no jardim de sua mansão, que notara mais detidamente a nova camareira. Uma garota muito bela e muito tímida, cujo olhar era algo encantador. Não demorara para que seus impulsos afetivos até então reprimidos em nome dos negócios lhe tomassem de assalto e de modo avassalador. Apaixonara-se perdidamente e irremediavelmente. Ignorara os conselhos do tio sempre atento e disposto a intervir. E por essa razão, perdera a companhia do tio. Mais que isso, perdera a dedicação daquele que o protegera com tenacidade admirável desde que assumira a incumbência de criá-lo, educá-lo e prepará-lo para a vida, para a difícil tarefa, da qual muitos, menos o tio, o consideravam incapaz, o de honrar o nome da família e a memória dos pais. Àquela altura da vida, Licurgo já contava 56 anos. E a jovem camareira pela qual se apaixonara, não mais que 22. Tiveram um filho, às escondidas, que jamais fora apresentado à sociedade. O menino poucas vezes saía de casa. Recebia educação de renomados professores tudo sem alarde e de maneira discreta. Fabrício, a criança, crescera sem estabelecer relação de amizade e sem contato externo. Tudo lhe era provido, sem que dele se exigisse o menor esforço. Quando completara 60 anos, Licurgo fora acometido de terrível e ingrata surpresa. Diagnosticado como portador de doença degenerativa, viu-se dia a dia definhando-se e perdendo autonomia perante a vida. O tio, sua única referência familiar, já havia falecido há alguns anos. Dinheiro, contudo, não lhe faltava e sempre era a tábua de salvação para todos os problemas. Só não pudera lidar com a doença, que desconhecia o valor e o poder do dinheiro e se agravava rapidamente e cada vez mais. Gastara fortuna com médicos, remédios e tratamentos. Tudo em vão. Ao seu lado, apenas Valdirene, a jovem camareira, amante dedicada de outrora e, agora, esposa e administradora de todos os seus bens. Pequena e tímida diante da grandeza da responsabilidade que passara a ter diante de si, dedicara, sem o conhecimento de Licurgo, a confiança dos negócios do marido a pessoas inescrupulosas que, em pouco tempo, puseram tudo a perder. Consciente dos nefastos acontecimentos à sua volta, todavia, sem que nada pudesse fazer para impedir a derrocada do império que construíra, Licurgo sofria com a doença incurável e o futuro incerto.
Certa manhã ensolarada, chegaram uns homens todos bem vestidos e engravatados trazendo papéis que Valdirene, a procuradora dos negócios do marido, deveria assinar. Recusara-se, em princípio, mas, tal fora as ameaças e pressões desumanas naquela sala de visitas da mansão de Licurgo Bitencourt, que a jovem e despreparada Valdirene acabara por ceder aos prantos. Finda as formalidades, fora informada que tinha 24 horas para deixar aquela mansão inapelavelmente. E quando indagara para onde levariam Licurgo, e o que dele fariam, ficara sabendo que seu destino, seria um sanatório na Serra da Mantiqueira. Resolvera partir antes. Fora até o quarto para despedir-se, acompanhada de um daqueles homens engravatados vestidos de preto. Aproximara-se da cama, enquanto Licurgo dormia e, timidamente, beijara-lhe na testa, tão delicadamente, para não despertá-lo. Ao bater à porta atrás de si, Valdirene tinha lágrimas nos olhos e uma dor terrível no coração. No quarto, sozinho e abandonado, Licurgo tomara ciência de qual seria o seu destino. Fechou os olhos, triste, quando viu a penumbra da noite que se aproximava tornar o quarto escuro e sem vida.
Por Gerado J. Costa Jr. / Foto: Imagem ilustrativa/Reprodução Internet.