Ocupada em cuidar e prover o sustento de seis filhos, Tereza nunca deu muita “trela” ao diálogo com seus rebentos. De manhã à noite pedalava sua máquina de costura como louca, para entregar vestidos às senhoras que podiam pagar por seus serviços, pouco tempo restando para os demais afazeres da casa, que eram delegados às filhas mulheres.
De seus seis filhos, só dois eram homens, e nada faziam para ajudar nos serviços da casa. Mas também pouco trabalhavam, e se o faziam, pouco contribuíam com o sustento do lar, ainda revoltados com a perda precoce do pai, que morreu de câncer quando o filho mais velho beirava os 12 anos de idade.
E assim seguia a rotina da casa de Tereza, que sem estudo nenhum, mal sabia ler e escrevia apenas em garatujas, o essencial para anotar as medidas dos clientes. Conclusão: família desestruturada, onde as mulheres trabalharam desde a juventude para ajudar no sustento doa lar, com pouco tempo e incentivos para estudos e lazer.
Mas o arroz com feijão e ovo nunca faltava na casa de Tereza que, perdida entre costuras, esforçava-se para fazer um almoço digno para os seus. Filha do meio, nunca vou esquecer do sabor especial que tinha os ovos com tomates feitos por minha mãe. Tinha um gostinho especial que nunca consegui dar à mesma receita, também muito apreciada por minhas filhas.
Dentre todos os rebentos de Tereza, fui eu quem teve o privilégio de conviver com minha mãe por mais tempo. Os filhos já estavam casados, quando a vista começou a falhar e ela já não conseguia costurar para prover o próprio sustento. Passou, então, a morar comigo, que a amparei por muitos anos…
Pena que a consciência de que minha mãe um dia iria embora, demorou a chegar. E quando chegou, nos intervalos entre casa e trabalho, procurei dedicar-me mais a ela, que a muito custo foi revelando sua vida, sua verdadeira identidade de mulher interiorana, abandonada pelos pais quando criança, recolhida em lares estranhos para trabalhos escravos.
Foi em uma dessas conversas que revelou-me um dia, ter sido estuprada pelo filho do patrão. Nunca disse nada a ninguém, com vergonha e medo de ser castigada. Seguiu sua vida de mulher mártir, juntou os trapos com meu pai, com quem teve seus seis filhos e uma vida de muito trabalho e pouco dinheiro, num parque de diversões.
Assim, eu fui a guardiã deste seu segredo nunca dantes revelado, assim como de outras poucas memórias que me repassou de sua vida de criança abandonada, fazendo trabalho de adultos em sítios e fazendas na região de Santa Bárbara D’Oeste.
De amor pouco falamos. Ela não era dada a abraços e beijos, e embora nós, os filhos, procurássemos dar-lhe um pouco de carinho, nunca disse “eu te amo” a nenhum de nós. Talvez porque nos intimidasse com sua aparente frieza, nos acostumamos a guardar distância e também não dizíamos a ela que a amávamos.
Somente quando adoeceu e ficou acamada bateu em nós, seus filhos, o medo da perda. Cercamos sua cama de carinho, cuidados e indagações que já não podia mais responder, se esforçando em balbucios e gestos para se fazer entender.
Mas a morte, assim como a vida, traz ensinamentos. Em seus últimos dias de lucidez, quando minha filha mais nova fazia massagem em seu corpo, em parte paralisado, minha mãe conseguiu puxá-la para mais perto de si e deixou fluir seus sentimentos, num balbuciado “eu te amo”.
Talvez o primeiro. Mas com certeza o derradeiro. Uma declaração que nos deixou como legado de uma vida inteira.