Vi na TV alguns dias atrás que índios Yanomani mantinham sequestrados funcionários e aeronaves da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) em uma aldeia de Roraima.
Fiquei muito triste e lembrei-me de minha avó Jova, mãe de meu pai, cuja etnia indígena desconheço.
Como minha mãe era órfã, a única avó que conheci foi a vovó Jova. Meu pai dizia que ela era bugre. Assim como eu, talvez nem ele soubesse que bugre não é uma raça, e sim um nome depreciativo usado em referência aos indígenas brasileiros, taxando-os de rudes, selvagens, ariscos, incultos e hereges.
Quando me dei por gente e comecei a sentir necessidade de saber mais sobre meus antepassados, já era tarde, pois perdi meu pai aos nove anos. Como identificar a etnia de minha falecida avó, sendo que no Brasil vivem mais de 200 povos indígenas?
As lembranças nebulosas sobre minha única avó compreendem um curto espaço de tempo, por volta de 1958, quando tinha cinco anos. Lembro-me que ela morava nos arredores de Arealva, em uma casa de madeira no meio do mato, cujo acesso incluía a passagem por uma ponte sobre um pequeno rio e longa caminhada por estradas e trilhas de terra.
Nossa missão diária, minha e de meu irmão mais velho, era levar pão e leite todos os dias para ela. E lá íamos nós, caminho afora, estufando o peito por termos nesta empreitada uma missão secreta: vasculhar a casa de vovó para encontrar e jogar fora todas mangas que encontrássemos. Ela gostava muito de comê-las ainda verde, com sal, e como dizia meu pai, isso prejudicava sua saúde.
A casa de minha avó era rudimentar, cercada por mangueiras entremeadas por flores coloridas e perfumadas. Chegávamos de mansinho e raramente encontrávamos vovó Jova fora da cama. Assim, após revistar a casa toda, nos divertíamos brincando nas mangueiras enormes, até que vovó se levantasse para preparar sua frugal alimentação.
Era chegado o momento de agir, pois foi embaixo da cama que descobrimos seu esconderijo de mangas verdes, e também uma caixa de madeira com sal. Jogávamos as mangas e o sal pela janela, e íamos embora rapidinho, antes que ela descobrisse nossa traição.
Nos poucos momentos que passávamos com ela, não entendíamos nada do que ela falava. Vovó ficava nos olhando de um modo estranho, dizendo em sua língua palavras duras que nos assustavam. Talvez fossem até palavras amorosas, ditas sem qualquer pretensão de retribuição, apenas com o propósito de tentar se comunicar conosco. Sem sucesso, é claro!
E assim a vida fluía, até que ela se foi para sempre, talvez para um céu especial dos índios, onde eles sejam tratados com a estima e igualdade que não têm nesta terra brasilis.
Terra esta onde os verdadeiros donos vivem uma saga, desde o século XVIII, quando sofreram apropriações e expulsões de suas terras. Embora hoje os indígenas tenham terras demarcadas pelo Governo, isto não é garantia de qualidade de vida, saúde ou paz, uma vez que continuam tendo suas propriedades cobiçadas, invadidas, lapidadas e griladas por imigrantes, pequenos proprietários e garimpeiros.
Pobre de Ti, ó Pátria amada!
Por Nilce F. Bueno
Denise, desculpe não ter respondido antes. Que bom que minha crônica levou a reflexões tão importantes. Especialmente para mim que aprendo cada vez mais com colaborações como a sua. Obrigado por escrever sobre suas experiências.
Nilce, esse seu relato fez eu relembrar o Projeto Rondon que participei sobrevoei a floresta amazônica e o caminhar na floresta, vi as terras usurpadas e as inúmeras clareiras da floresta sem árvores com gado ou plantações de soja (depende muito da região amazônica que engloba alguns estados não propriamente só o estado do Amazonas). Ao mesmo tempo remeti as experiências de Brasília as votações da Câmara e do Senado sobre a propriedade indígenas (delimitação de terras) e quando recordo o rosto dos descentes indígenas alguns de rostos pintados e outros não somente seguindo sem saber o que ali estava sendo votado.
A base da Funai distante um casinha de madeira na selva e inúmeros índios isolados, por ali, mais um índio executado pelo velho proprietário. Sempre digo esse Brasil é de Brasis. A pátria amada Brasil, tem índias que foram presas em gaiolas para o branco aproximar e se fosse ao contrário nosso processo de descobrimento do Brasil?
Acredito que não descobrimos o Brasil, após nos apropriamos dele e massacramos nossos índios. Recordei uma figura emblemática de uma passagem bíblica em Gênesis Caim matou Abel, e o sangue escorreu na terra inúmeras consequências ocorreram, mas aqui matamos muitos de nossos índios o sangue escorreu na terra e a consequência perdemos parte de nossa riqueza, vidas e a cultura dessa terra.
Enfim, obrigada Nilce por compartilhar o texto me trouxe inúmeras recordações e até mesmo a experiência no IBCCRIM sobre direito indígena e estudos sobre crimes contra indígenas. Novamente, obrigada. Gratidão. Vou dormir refletindo sobre tudo.
Que bacana, Nilce! Tive a honra de conhecer de perto indios Guarani e Kaiowá e passar um tempo com eles para conhecer seus costumes ná época da faculdade. Conheci o que a tv burguesa não mostra: o sofrimento do povo que é obrigado a lutar todos os dias por suas terras, a morrer por elas e se sujeitar a salário dos brancos ( em suas próprias terras) para sobreviver. E ainda assim, são chamados de preguiçosos.
Vi indios ‘de roupa’, na tv. Carregando celulares e dirigindo motos. Lá tudo que vi foi pobreza extrema! Foi índio reclamando da instabilidade do clima para as plantações ( que claro, é culpa do homem ‘branco’), como consequencia, precisam ganhar dinheiro pra comer…
Queria muito que todos pudessem ter a experiência de conhecer sobre algo antes de julgar. Pra mim foi maravilhoso. Foi um despertar!
Admiro muito esses verdadeiros cidadãos brasileiros! E foi ótimo ler seu texto e poder relembrar essa experiência!
Parabéns!
Obrigado Pamella. O bom de escrever crônicas e bem isso. Os leitores se sensibizam, se envolvem, contribuem com informações valiosas que aumentam cada vez mais o conhecimento de todos, abrindo nossa visão sobre as políticas publicas oferecidas a esse povo tão sofrido em extinção…