A tradição incentiva a versão de que os negros não tiveram participação na luta abolicionista e que o fim da escravidão foi uma concessão política. Pesquisas garantem que houve resistência e luta.
Historiografia mais atual mostra que a Abolição aconteceu em consequência de rebeliões e perda de controle sobre cativos. Antes de ser uma concessão, a liberdade conseguida foi uma conquista.
Pesquisas atuais descartam a imagem de escravos como personagens passivos e lhes consagram o papel de protagonistas da história. Ainda, reconhecem a atuação de abolicionistas brancos, mulatos e negros como força de integração racial e libertária, apesar de ingênua, por não haver previsto a discriminação a que os libertos seriam submetidos nas décadas seguintes.
A luta prossegue na atualidade com afrodescendentes sendo protagonistas da história, como nunca deixaram de ser, apesar do que ainda diz tradição.
Calendário
O final da escravidão em Rio Claro tem duas datas. Uma nacional e uma municipal. Em nenhuma houve concessão. Ambas se deram por que não havia mais como controlar a resistência negra e a participação popular para se conquistar a Abolição.
Boa parte dos fazendeiros de Rio Claro antecipou-se à Lei Áurea de 13 de maio de 1888 e libertou escravos em 5 de Fevereiro do mesmo ano, data considerada na cidade com sendo da Abolição Municipal. As tentativas de caracterizar ambas as conquistas como pacíficas só se justificam como opção política e ideológica.
Cena da época
Em fevereiro de 1888 o mercado de escravo estava abalado pela resistência negra que, por implicar em falta de segurança, fizera o preço de um escravo cair de 2.000$ réis para 800$ réis.
O golpe final neste tipo de mercado veio dos bancos do Rio de Janeiro e São Paulo, que deixaram de aceitar escravos como garantia para empréstimos. Em média os escravos representavam um terço da população no município.
Evitando o pior
Por falta de controle de fugas e rebeliões, a maioria dos fazendeiros viu-se obrigada a dar início à libertação de escravos. A ideia era que, antes de ocorrer o pior, melhor seria abrir mão do trabalho servil. O objetivo era ganhar tempo até organizar a imigração de europeus. Por meio de acordo regional, deu-se início à libertação.
Em Rio Claro, o principal ato de alforrias coletivas aconteceu no Jardim Público no dia 5 de fevereiro. Foi uma libertação estratégica. Uma válvula de escape, que procurava dar à libertação a aparência de concessão benemérita para não deixar transparecer o clima de preocupação. A concessão tinha caráter informal. Não havia lei local para garantir sua aplicação. Mesmo que houvesse, não haveria valor sobre a Constituição escravocrata. As atas da Câmara Municipal não trazem registro sobre a formalização da iniciativa.
Abolição
Nem todos os proprietários de escravos aderiram à medida. Os fazendeiros que não participaram da solenidade “libertária” no Jardim Público permaneceram irredutíveis até a última hora. Só foram definitivamente derrotados pela Abolição Nacional, com a promulgação da Lei Áurea, em 13 de Maio de 1888.
Uma semana antes da Lei Áurea, o Papa Leão XIII havia clamado pela libertação no Brasil. A situação era incontornável.
A consequência política da Lei Áurea levou à mudança do regime. Contrariados pela perda de seus escravos e por não terem sido indenizados pelo governo imperial como pretendiam, os fazendeiros aliaram-se aos republicanos no golpe que derrubou a monarquia em 15 de novembro de 1889.
Fora da festa
O brasilianista Warren Dean avalia que a ausência de negros na festa de libertação no Jardim Público no dia 5 de fevereiro pode ser entendida como recusa dos libertos a participarem de uma encenação de liberdade concedida. A libertação tinha sido conquistada com luta e não haveria por que fingir o contrário. A tradição conta que os libertos fizeram sua própria festa dias depois. Com muito samba, ou semba, como se dizia na época.
Imigrantes
Desde a primeira tentativa de abolir o tráfico de africanos para o Brasil, em 1830, os fazendeiros sabiam que a escravidão estava condenada e seu fim era questão de tempo. Tanto foi assim que o então senador Vergueiro dera início nos anos 1840 à substituição do trabalho servil por mão de obra imigrante. Por maus tratos aos europeus, seu projeto fracassou pelo simples motivo de que os imigrantes em sua maioria eram alfabetizados e tinham conhecimento de leis de proteção à cidadania.
Fracassada a primeira tentativa de imigração, os fazendeiros paulistas retornaram a investir no tráfico de africanos, o que retardou a Abolição no Brasil, conforme estima Sérgio Buarque de Holanda.
Receosos dos imigrantes, os fazendeiros paulistas fizeram de tudo para manter seus escravos o máximo possível. Tornaram-se radicais em repressão a fugas e rebeldias até quando foi possível. No restante do País a escravatura já havia se esvaziado. A Abolição no Ceará acontecera em 1883, para, em seguida, ser adotada por Amazonas, Goiás, Paraná e Rio Grande do Norte.
Pioneiros
Diversos municípios podem reivindicar pioneirismo abolicionista. O maior destaque cabe a Santos, que não apenas libertou os escravos em 1886, mas também se mobilizou para receber fugidos de todo o estado de São Paulo. Em julho de 1887 eram dois mil os abrigados naquela cidade. Em dezembro do mesmo ano o contingente de refugiados ali somava mais de dez mil.
Ribeirão Preto extinguiu a escravidão no município, oficialmente, por lei de 3 de agosto de 1887. Diversas cidades viram seus escravos alforriados, mesmo que parcialmente, no Natal daquele ano, entre elas São Carlos. Fazendeiros de Rio Claro também promoveram este tipo de alforria parcial em dezembro de 1887, contando com algum alívio da pressão feita por abolicionistas e o clima de revolta entre escravos.
No final, os fazendeiros locais conseguiram a distensão esperada. Eles jogaram politicamente com o tempo e recuperaram o poder. E com vantagem. Mas, pela expansão da lavoura para o norte o Estado, Rio Claro perdeu a condição que mantivera, em 1886, de terceiro maior produtor paulista. Em 1901, o município já não estava entre os dez primeiros, embora sustentasse maior produção do que naquela época.
A estratégia utilizada pelos fazendeiros para recuperação do poder se deu através da República, que controlaram até 1930. Eles empreenderam a antiga aspiração de contar com recursos públicos para incentivar a imigração de europeus.
Discriminação
A partir dali seguiu-se o infortúnio dos negros libertos que se viram atirados à própria sorte, desempregados e vítimas do racismo. Eles eram estigmatizados com base em lei que proibia a “vadiagem”. O destino de muitos foi a concentração em favelas de centros urbanos de formação industrial ou em quilombos rurais. Romeu Ferraz cita que até 1920 em Rio Claro o atual bairro Aparecida era conhecido como bairro do Quilombo.
Nova leitura
Gilberto Freyre, nos anos 1930, foi precursor ao entender os negros como protagonistas na História, em “Casa Grande e Senzala”. Nas últimas décadas, as versões tradicionais de passividade dos escravos na conquista de sua libertação passaram a ser contestadas por pesquisadores como Warren Dean, Manuela Carneiro da Cunha, Sidney Chalhoub, Roberto Conrad, Jacob Gorender, Décio Saes, Emília Viotti da Costa, além de outros.
O Diário do Rio Claro no abolicionismo local
Na edição de 7 de fevereiro de 1888 do “Diário do Rio Claro”, o jornalista José David Teixeira registra a lendária festa da Abolição Municipal de 5 de fevereiro e a participação do jornal no processo. O acontecimento foi notícia também em jornais de São Paulo e Rio de Janeiro.
A tradição incorpora o evento como o pioneirismo municipal que garantiu o fim do trabalho servil na cidade. As atas da Câmara Municipal não trazem registro do acontecimento.
O brasilianista Warren Dean, já nos anos 1970, questionou a eficácia da abolição local por haver localizado indícios de presença de escravos em fazendas depois da comemoração. Dean fez notar que não há registro da presença de libertos na festa comemorativa.
O registro do “Diário do Rio Claro” revela a força do movimento abolicionista na cidade e o apoio que a causa conseguia junto à população.
O conjunto de nomes citados na reportagem mostra que as lideranças mobilizadas eram em sua maioria de republicanos. Naquele momento o chefe do governo era o barão do Grão Mogol. Ele foi republicano e renunciou ao título de nobreza a ele concedido por Pedro II por suas contribuições à Guerra do Paraguai.
A íntegra da notícia
“Como foi anunciado, realizaram-se anteontem os festejos em regozijo da libertação dos escravos do município desta cidade.
O largo do Teatro São João, local principal das festas, achava-se esplendidamente preparado com arcos triunfais às entradas, arcos de folhas e flores, bambus, bandeiras, galhardetes etc.
Ao centro do largo elevava-se bastante alta a tribuna popular, enfrentando com o magnífico coreto construído naquele largo e que foi ocupado pela banda de música da sociedade “6 de Maio”, construiu-se outro coreto onde tocou durante a tarde a banda de música italiana “Humberto I”.
Muitas casas da cidade achavam-se embandeiradas, salientando-se, dentre elas, as da Rua 4, na parte compreendida entre as avenidas 6 e 10, onde também existiam arcos e ramagens, festões e galhardetes, estando arvorada na sacada do senhor João Witzel uma belíssima bandeira branca, com a seguinte inscrição: “Salve, salve ó santa liberdade!”.
Desde as 3 horas da tarde que o povo afluía em massa para o largo do teatro, de onde continuadamente subiam ao ar inúmeros foguetes. Às 4h30, mais ou menos, chegou o trem especial da vizinha cidade de Limeira, trazendo os entusiastas abolicionistas dali e uma excelente banda de música.
Às 6 horas subiu à tribuna, acompanhado pelos senhores Cláudio Braga, Lucas do Prado, capitão Francisco da Costa Pinho e o senhor José David Teixeira, o excelentíssimo barão de Grão Mogol, presidente da municipalidade, que em entusiástico discurso declarou livre o município desta cidade, saudando o povo a liberdade.
Tocaram, então, ao mesmo tempo, as três bandas de música presentes. As baterias e os foguetes estrugiram aos ares, sendo frenética e viva a alegria da multidão.
Em seguida, teve a palavra o senhor doutor Luiz da França Carlos da Fonseca, orador oficial, que em brilhante discurso, falou sobre a elevação do ato presente.
Ocuparam depois a tribuna os seguintes senhores: Lucas Ribeiro do Prado, Teófilo de Oliveira, Antonio Diniz, Guilherme Exmínio, doutor Pernambuco, Artur de Oliveira, Freitas Junior, José David Teixeira e outros cujos nomes não podemos precisar agora.
A inteligente atrizinha Julieta dos Santos recitou da tribuna popular uma esplêndida poesia abolicionista, sendo calorosamente aplaudida.
O excelentíssimo barão de Grão Mogol falou em último lugar, sendo já bastante noite. Terminados no largo do Teatro os festejos, desceu o povo acompanhado de duas bandas de música pela Avenida 1, saudando, em sua residência, o redator desta folha (Diário), que mereceu do excelentíssimo barão de Grão Mogol uma brilhante saudação.
Em seguida o povo saudou o distinto abolicionista Augusto C. Gomes, usando da palavra com eloquência que todos lhe reconhecem o senhor Teófilo Oliveira, orador do grupo limeirense, saudando também o senhor Gomes em nome do povo rio-clarense o senhor Antonio Diniz.
Continuando a manifestação, foi saudado, em casa de sua residência, o principal promotor dos festejos senhor capitão Francisco da Costa Pinho, falando o senhor Oliveira e o diretor desta folha.
Brilhantemente saudado também pelos manifestantes foi o honrado senhor ex-delegado de polícia Cláudio Luiz da Silva Braga, que agradeceu comovido o aplaudidíssimo discurso com que o saudou, em nome dos abolicionistas de Limeira, o senhor Teófilo de Oliveira.
O largo do Teatro e muitas casas da cidade estiveram brilhantemente iluminados. À noite, a companhia lírica do senhor Milone cantou, no São João, em recital de grande gala, estando o teatro exteriormente adornado, a sentimental ópera de Verdi: A Traviata.
No intervalo do terceiro para o quarto ato, saudou a companhia, em nome dos rio-clarenses, levantando vivas ao senhor Rastelli, aos senhores Garbini e Ravagli (atores) e a toda trupe, o senhor Artur de Oliveira.
Terminada esta notícia, folgamos em declarar que a paz não foi alterada, realizando-se tudo na melhor ordem possível”
O registro final da notícia chama a atenção por salientar que a ordem pública fora preservada, o que mostra haver expectativas quanto ao controle da situação. Confirma que havia um clima de insegurança.
Por J.R. Sant’Ana