O Sr. Serafim Del Grande muito se orgulhava de ter o mesmo nome do presidente do seu adorado “Parmera”. Obra e graça da mama, uma palestrina fanática que, em dias de jogos, espalhava camisas e suvenires do Verdão por toda a casa e grudava no radinho de pilha sintonizada no Fiori Giglioti. Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo torcida brasileira. Sentiu um arrepio quando essa lembrança lhe veio à mente, alcançando-lhe o coração, o Sr. Serafim.
Estava na cozinha da casa onde morava de aluguel, debruçado sobre o livro caixa, da associação beneficente para a qual prestava serviços de contabilidade gratuitamente. Deparava-se com o fato do desatento tesoureiro ter esquecido de lhe enviar em meios aos recibos e notas fiscais o extrato bancário do mês anterior. O café que a diarista lhe preparava estava sendo colocado na garrafa por ela, com todo o cuidado e atenção habitual. Ela lhe perguntou se havia comprado o adoçante naquela semana, e ele, um tanto encabulado, lhe dissera que não. Vai tomar amargo, mesmo? – ela quisera saber, com ares de reprimenda, próprio da intimidade que havia entre eles.
Pois bem, pensara o Sr. Serafim. Vamos de café amargo. Tudo por causa da porcaria da diabetes. A diarista, contudo, era por demais atenta. Marcou seu retorno no médico? Não, querida. Que outra pergunta inconveniente ela ainda tinha a lhe fazer naquele final de tarde? Os frios que comprei na padaria estão na geladeira, ela disse. Posso ir agora? Pode sim. Volto na terça. Segunda, ele teria lhe corrigido, acaso tivesse coragem.
Dali a pouco, os últimos raios de sol entrariam pela porta aberta da cozinha e, talvez, despertassem o seu gato soneca, deitado desde o meio-dia na cadeira no entorno da mesa.
Viria a noite, calma e sedutora. E, com ela, mais lembranças. O que fazer depois que Deolinda, a diarista, fosse embora? Talvez, botasse algum disco vinil pra tocar. Mas, as músicas… Ah, elas tem o poder de desenterrar as lembranças. E o Sr. Serafim, seria capaz de ouvir Dona Eleonora, sua saudosa mãe, lhe ralhar lá da sala. Menino, abaixe um pouco esse som que eu quero assistir a minha novela. Não houve tempo pra isso. A mãe morreu muito cedo, ao cinquenta e sete anos. Vítima de uma doença fatal que nenhum médico soube diagnosticar.
De modo que, quando se tratava da senhora sua mãe, a finada dona Eleonora, lembrança e desejo se confundiam na mente por vezes confusa e no coração judiado do Sr. Serafim.
Matar o tempo, nem sempre era tarefa fácil e agradável. Lia muito jornais, que comprava logo pela manhã, na banca da praça perto de onde morava. E tinha por hobby escrever contos e poesias nas horas vagas, que, por sinal, eram muitas. E para isso, recorria a uma técnica infalível, que consistia no seguinte. Anote aí, leitor: Observe as coisas como são e tente imaginá-las como poderiam ter sido. Inverta a ordem dos acontecimentos e a personalidade das pessoas. Imagine uma dificuldade, uma pedra no meio do caminho. Sugira e não revele. Insinue mas não afirme. Coisas assim. Onde aprendera? Segredo de estado.
Serafim acreditava ter vivido outras vidas. Tinha apreço especial por uma localidade. São Francisco de Paula, em Havana, Cuba. Gostaria muito de visitar o local. Sabia que se o fizesse, encontraria as suas pegadas por lá. Mas não tinha recursos financeiros. Vivia de aposentadoria. Estourava todos os meses o limite do seu cartão de crédito. Deixava boa parte dos seus vencimentos na farmácia quase sempre. Aprendera a viver com pouco. A se adaptar às circunstâncias. Reconhecia-se mais sábio e mais verdadeiro de uns tempos para cá. Passara a ser mais paciente consigo mesmo e mais tolerante com as pessoas. E, aos seus olhos cansados, o tempo escoava tal como em um poema de Herberto: devagar, bem devagar.
Deixou o livro caixa de lado. Pegou o telefone e pensou ligar para Lígia. Talvez houvesse chance de pegar um cinema e, depois, comer uma pizza. E quem sabe um sorvete. E depois, então…
Serafim acomodou o seu ímpeto repentino, quando se lembrou das recomendações do médico. Foi até a sala e apanhou para ler um livro da estante. “Se eu não puder te esquecer”. Era o livro de sua autoria, o seu favorito. Escrito com as dores revividas da juventude. Pago com o empréstimo consignado que fizera ao final do ano passado, em um daqueles momentos de sandice, capazes de fazer com que um homem de 75 anos, sinta-se vivo e realizado.
Mal Serafim acomodou-se no sofá com o livro nas mãos, o gato soneca despertou e pulou no seu colo à procura de um carinho, um minuto de atenção. Tudo estava escuro, de repente, então, percebeu ao alisar o gato. E a noite, calma e sorrateira, já havia se deitado completamente sobre suas vidas.
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: ilustrativa/Reprodução.