Botou todas as suas coisas dentro de uma carroça, e eram bem poucas coisas, duas malas, uma valise e até o seu casaco de couro, adquirido em prestações, foi parar na carroça, ao invés de mantê-lo sobre o ombro, como de hábito.
Às seis da manhã já clareava o dia e o vento gelado que fizera a noite toda havia subitamente desaparecido, de modo que a temperatura ia aumentando à medida que o sol se levantava.
Sabia que estava indo embora, mas não sabia para onde estava indo exatamente. Talvez a estação de trens. E depois? Qual seria então, o seu destino? Sua única certeza é que não ficaria naquela cidade depois de tudo o que houvera acontecido na noite anterior.
Antes que subisse no estribo da carroça para se acomodar para a viagem que seria longa e desagradável pelas ruas de paralelepípedos até chegar à estação de trens, arriscou uma última olhada em direção à casa que deixava para todo sempre. A casa onde nascera, aprendera a andar e conhecera mulher e a contar dinheiro, entre outras coisas.
A irmã, sempre petulante e inconveniente, estava à janela, atrás da cortina, a observá-lo, como para que amaldiçoá-lo pela última vez. Então é assim que pessoas como você pretendem difundir cultura neste país, lembrava-se de ter dito à irmã em uma das suas últimas discussões.
Era um escritor, estava certo disso. Não ousaria jamais dizer que era um poeta, porque não se sentia em condições de sê-lo. Poetas não são aqueles que falam sobre si, mas o que falam sobre o nada e conseguem extrair disso alguma coisa, dizia a si mesmo, sempre que algum de seus amigos mais próximos, e eram poucos, ousava admirar um de seus versos publicados sob pseudônimo, no jornalzinho do bairro, cuja circulação era semanal.
Pelo fato justamente de ser um escritor, jamais poderia assumir um lugar na empresa da família que chegava ao que tudo indicava à terceira fase de sua muito digna e admirável história de várias gerações: a decadência.
Fundada por seu bisavô, a empresa, um bem conceituado estabelecimento comercial no ramo de secos e molhados, outrora muito próspera, lutava agora contra a concorrência desigual das grandes redes que tomavam de assalto a preferência da freguesia, cada vez mais interessada em novidades e comodidade.
O pai e os tios, a quem cabia conduzir os destinos da empresa, como todos da família se referiam ao bem instalado armazém que lhes dera sustento e alguma fortuna até então, foram alertados, não fazia muito tempo, quanto à ameaça da desleal e injusta concorrência que agora se confirmava. Mas não deram ouvidos ao bom e amigo vendedor de querosene. Não levaram à sério suas informações valiosas, ainda que amedrontadoras, nem mesmo quando ele, lhes telegrafara, dias depois da última visita, avisando que havia perdido o emprego que mantinha com muito zelo e orgulho havia mais de 20 anos.
Por isso, quando na noite anterior a esses acontecimentos aqui narrados, teve uma conversa definitiva com seu pai, irmã e tios, expondo-lhes os seus planos literários, insanos, na opinião deles, teve a absoluta certeza, que seus dias naquela casa enorme e bela estavam contados e que seu vínculo afetivo com a empresa e a própria família estavam irremediavelmente abalados, quase desfeitos, senão destruídos; o tempo haveria de mostrar.
Como iria sustentar-se, não sabia. Talvez arrumasse uma colocação como jornalista que era o que todos os escritores e poetas fracassados na vida e à beira da miséria e do alcoolismo buscavam fazer. Mas faltavam-lhe contatos e boas relações que pudessem coroar de êxito o intento.
Sempre fora um homem fechado em si mesmo. De poucas palavras, as quais preferia escrever, quando encontrava motivo e ocasião. Nunca tivera sua própria renda e sempre dependera da boa vontade e paciência de seu pai, irmã e tios para se manter, para dar conta das suas necessidades mais básicas como morar, comer e vestir-se.
Mesmo como jornalista, acaso conseguisse uma improvável colocação, ganharia míseros trocados que seriam logo consumidos pelos hábitos não recomendáveis, que por certo iria com o tempo adquirir, em face o estilo de vida que passaria a levar, certamente.
. Não era de fato um horizonte promissor o que vislumbrava diante de seus olhos. Mas havia tomado uma decisão muito importante e definitiva para que cedesse à fraqueza e renunciasse aos seus propósitos. O que seria de si não sabia. Talvez, enquanto tivesse dentes na boca e um sorriso bonito, e a barriga indecente ainda não saltasse para fora da calça, talvez encontrasse em uma noite qualquer com uma dama insatisfeita, com a relação conjugal nada interessante e a convencesse de que, ao menos vez por outra, poderia preencher com suas habilidades inconfessáveis a carência afetiva, o vazio existencial de madame, em troca, naturalmente, de algum dinheiro. Talvez pudesse manter esse relacionamento de maneira discreta por algum tempo, muito tempo, quem sabe, até ganhar a confiança inabalável e definitiva dessa dama carente que certamente iria surgir como tábua de salvação de sua porca vida. Mas, agora, e antes de tudo, precisava reunir coragem para botar o pé direito no estribo daquela carroça e partir, em direção a estação de trens. Uma vez lá, segurando com mãos trêmulas sua pouca bagagem, talvez finalmente se decidisse que direção tomar e o que fazer da vida.
Foi nesse exato momento em que o solavanco da freada do trem o despertou. Olhou para o lado, ainda sonolento e encontrou a irmã, com seu habitual olhar de reprimenda, em sua direção.
“Levante-se, Ernesto, temos muito o que fazer nesta cidade, hoje”.
Bocejando, enfiou as mãos no bolso da calça de linho e encontrou um papel dobrado. Eram as anotações para um pretendido conto que estivera a registrar durante a viagem antes de pegar no sono. Não teve dúvidas de que elas ficariam melhores se atiradas pela janela do trem. Foi o que fez, sem nenhum remorso. Aos 26 anos, começava a se habituar a desistir definitivamente de seus sonhos, para tornar-se com alguma sorte e um pouco de persistência, um homem prático e objetivo. E vencedor, neste mundo de aparências, quem sabe…
Por Geraldo Costa Jr. / Foto: Divulgação