Foi uma festa quando da sua chegada. A senhora, que por ela tanto esperara, a recebera com um largo sorriso e brilho nos olhos.
As crianças logo se ocuparam dela. Por volta de 6 da tarde, o homem que tornara possível tão auspicioso acontecimento fora recebido com beijos e abraços. Não estivesse a fanfarra da escola de férias, lá estaria também para agradecê-lo e homenageá-lo. A pipoca e o refrigerante, entretanto, não faltaram. Nem a visita nem sempre bem vinda dos vizinhos. Todos queriam vê-la. E era de fato bonita.
Assim, a partir desse momento, ela passou ao convívio diário da família. Presente em todos os acontecimentos. Bons e ruins. Sobre ela, lágrimas foram derramadas, segredos revelados. Participou como testemunha das inúmeras conversações, muitas delas, que alcançavam altas horas da madrugada, e ultrapassavam o limite do tolerável para aquela adorável família que tão bem a acolhera.
O tempo, entretanto, avassalador e impiedoso, traz muito além das intimidades e do comprometimento, traz a realidade, das coisas que se depauperam, das pessoas que se revelam, que se diminuem, que, pouco a pouco, se acabam derrotadas por suas más escolhas, vícios e erros.
Anos depois, ao cair da noite, presenciou impassível, sem nada que pudesse fazer, o último adeus à senhora que tão bem a recebera naquela casa. Fora-se a bondosa dama com seu sorriso largo e o brilho nos olhos, que de há muito já haviam desaparecido, para nunca mais voltar.
Foram-se todos, cada um, em dado momento, até que naquela casa, apenas ficasse o homem responsável por sua vinda. Mas ele já quase não se ocupava da sua presença. Já não compartilhava o trabalho, a leitura, as refeições. Isolara-se dominado sem esboçar nenhuma resistência por injustificáveis medos e aflições. E não demorou até que ele também fosse embora daquela casa para nunca mais voltar.
Então, a vida à sua volta desapareceu, e se fez silêncio. Permanecera completamente só naquela casa enorme, cheirando ausência e poeira. A sujeira dia a dia acumulando-se pelos cantos e por toda parte.
Uma certa manhã, surgiram pessoas estranhas. E a levaram. Puseram-na em um caminhão, entre outras coisas, mobiliários, ferramentas, tábuas, cordas e demais utensílios. E a deixaram numa outra casa, inabitada. Igualmente enorme e suja, deteriorada e sem vida.
Ali permaneceu isoladamente, sem merecer a atenção da voz e do olhar humano. Num canto qualquer ficara. Merecedora tão somente da presença do brilho do sol de cada manhã a cobrir-lhe com um aspecto fugaz de vida, até que a sombra da tarde, depusesse suas esperanças.
Fora assim os seus dias, os piores, inimagináveis dias. Foi se deteriorando pouco a pouco, perdendo-se na sujeira e no desprezo. Perdendo a força, a elegância, a utilidade, enfim, desfazendo-se. Nem um resquício da admiração e da inveja que um dia despertara nas pessoas. Nada lhe restara, senão sua tola e inútil presença.
Tempos depois, estava na rua. Fora colocada na calçada, ao lado dos escombros de um muro esburacado que revelava aos olhos mais atentos um terreno baldio, cujo mato havia crescido muito naqueles últimos dias devido à forte chuva. Passavam as pessoas por ali sem notar sua presença. E quando o faziam, era para criticá-la, dirigir-lhe um olhar de desprezo, de abandono, e por vezes, raiva.
Numa noite qualquer, alguém piedoso a levara dentro de uma kombi. Melhorara um pouco a sua aparência o melhor possível, dispensando-lhe todo cuidado que há muito não recebia.
A bondosa pessoa arrumara-lhe um lugar todo especial em sua casa, pequena, simples, mas bem arranjada e limpa: a cozinha. Voltara então a ter utilidade, apesar das deformidades irreparáveis, efeito do tempo. Tornara-se de algum modo cúmplice do suor e da inspiração daquele escritor, que finalmente, depois de muito tempo e longa procura, encontrara a mesa ideal onde pudesse escrever sem sentir dores terríveis nas costas.
O único problema, vez em quando, eram as cinzas do cigarro. Mas, lei da vida, todo benefício exige um esforço. Mesmo para uma mesa, velha e esquecida, mas que voltara a ter alguma utilidade.