O ano era 1922. O Brasil comemorava o centenário da Independência, a União Soviética era formada, a letra do hino nacional era oficializada e São Paulo era palco da Semana de Arte Moderna. Naquele ano, no dia 7 de março, nascia em Rio Claro, no bairro São Benedito, o primeiro dos seis filhos do carpinteiro Benedicto Guilherme e da dona de casa Leonor, que recebeu o nome de José Guilherme.
Hoje, 100 anos após aquele dia, o momento é de celebração pela vida. Esbanjando vitalidade, José faz aniversário e comemora ao lado dos filhos, netas e bisnetos seu um século de nascimento. Para além da peculiaridade, chegar aos 100 anos de vida, há ainda mais para celebrar, 100 anos de dedicação à música.
Nome conhecido entre os artistas da cidade, José Guilherme fez história não somente na região, mas no Brasil, e tem também admiradores fora dele. Devido a sua destreza na arte de tocar o violão, mas sobretudo, ao seu empreendedorismo frente à loja de instrumentos musicais Jog Music e sua engenhosidade ao iniciar a fabricação de instrumentos musicais.
HISTÓRIA
Tudo teve início na década de 50, época em que um emprego na Cia. Paulista de Estradas de Ferro e, principalmente, um cargo de professor na Escola Ferroviária eram luxo. Dos seis irmãos nascidos ao pé da figueira de São Benedito, quatro desenvolveram o ofício na ferrovia, excluindo apenas as duas irmãs Lila e Nezinha (in memoriam).
José (100), Benedito (in memoriam), Euclides (in memoriam) e Roberto (in memoriam) trilharam o mesmo caminho ao cursar a escola ferroviária, trabalhar na Cia. Paulista e morar no mesmo quarteirão no bairro São Benedito, inclusive, dividindo o mesmo quintal.
De todos, José foi o mais ousado. Ainda aos dez anos teve seu primeiro contato com um instrumento musical. “Um rapaz apareceu na rua com um cavaquinho, eu pedi pra ver e comecei a tocar de qualquer forma e o rapaz disse que eu levava jeito”, lembra José Guilherme.
O pai logo percebeu a aptidão do filho e o colocou para aprender violino com um conhecido professor de Rio Claro, Fábio Marasca. Do violino, José conheceu um violão, através do tio Serafim Pitolli, quando ainda tinha 15 anos. E a partir daí, não abandonou mais o instrumento. “Era um instrumento completo, o violino não tinha orquestra para tocar junto, e não consegui largar mais do violão.”
Em 1947, aproveitando um curso oferecido no Rio de Janeiro pela Cia. Paulista foi bater à porta da Rádio Tupi. “Eu perguntei onde poderia encontrar um professor bom de violão para aprender o que ainda não sabia, me falaram que tinha um professor que dava aula na loja Guitarra de Prata, foi aí que fui ter aulas com Dilermando Reis”, conta José, que ainda se gaba, “eu já tocava de ouvido há dez anos, então não aprendi muita coisa diferente”.
Da necessidade de acessórios para instrumentos musicais, tão escassos naquela época, José utilizou os conhecimentos que obteve nas oficinas da Paulista, aliado a seus conhecimentos musicais, para começar a fabricar pequenas peças.
Os primeiros acessórios foram chave de piano, o diapasão de garfo e a braçadeira de violão. A chave é a primeira fabricada no Brasil e, atualmente, a única com produção nacional. “Eu encontrei um rapaz que afinava piano na casa da dona Lizeloti Palotta, e ele se queixou que a chave alemã dele estava espanada e perguntou se eu não sabia arrumar, já que era mecânico, eu fiz uma para ele e ele disse que eu devia tentar vender, porque as chaves alemãs eram muito caras. Eu fiz mais algumas e fui vender em São Paulo e deu certo vendi todas”, lembra José.
Na sequência veio o vibrafone. Isso tudo aconteceu no final da década de 50, período em que nasciam os filhos, Rui Carlos e Luiz Fernando. Em seguida, nasceria Flávio José, no início da década de 60.
“Eu sempre ia à casa Manon (em São Paulo) vender as braçadeiras e vi um instrumento enorme de teclas e fiquei encantado, o Milo Zemi falou que se eu fizesse um daquele ele comprava de mim na hora. Eu olhei, olhei, vi como funcionava e voltei pra casa para tentar, fiz e voltei lá para vender, não existia quem fizesse vibrafone no Brasil, eu fui o primeiro mesmo. Fiz um para mim, mas não tinha ficado muito bom. Mesmo assim, quando voltei lá em São Paulo, ele lembrou e quis aquele mesmo que eu havia feito e me pediu que fizesse mais. Fizemos quatro, afinei tudo certinho. A procura começou a ficar enorme. Não dava conta de produzir. Assim surgiu a loja. Mas, antes disso, ficamos uns bons anos só com a indústria.”
Os filhos seguiriam o ofício do pai e até hoje são eles que continuam à frente da fábrica e da loja. A fábrica começou no quintal, com auxílio do pai e dos irmãos, que trabalharam na fábrica até os últimos dias de vida.
Da fábrica veio a necessidade de se montar a loja. Inaugurada alguns anos depois da fábrica, a loja ficava no mesmo quarteirão da casa de José. “Eu comecei a trocar os acessórios que fabricava por violão e outros instrumentos, que trazia para os meus alunos aqui, foi aí que começou a loja, mas não sai da Cia. Paulista enquanto não percebi que eu tinha freguesia”.
Na década de 60, com a falta de magazines e com o auge da televisão, a JOG começou a vender produtos eletrônicos e até mesmo bicicletas. “Quando meus filhos assumiram decidiram que venderíamos só os instrumentos e assim estamos até hoje”.
Diversas orquestras e músicos conhecidos utilizam os instrumentos de percussão para orquestra como vibrafones e marimbas. Ainda, a maior parte das fanfarras no país utiliza as liras da marca. Mais de 60 anos após a inauguração da JOG, José continua empunhando seu violão, sentado em cantinho no lado esquerdo da loja, entoando a trilha sonora do ambiente musical que construiu a partir de um sonho.
“Sentimentos de alegria e gratidão por tudo que ele nos proporciona como pai e empreendedor que soube fazer da música a sua e a nossa profissão. Um exemplo centenário para todos nós! Somos três filhos, todos empenhados neste desafio de perpetuar sua história através da nossa união frente à Jog Music e a Vibratom (que já agrega a terceira geração). Rumo aos 200 anos!” – filhos Rui, Luiz e Flávio Guilherme.
“As participações sociais que envolvem o trabalho da Orquestra Sinfônica de Rio Claro sempre foram extremamente importantes para o desenvolvimento do trabalho realizado e pela proporção que veio a ter ao longo dos anos até o dia de hoje. A Jog Music através do Sr. José Guilherme e família tem um papel importante nesse trabalho, com doação de vários instrumentos, como violinos, instrumentos de percussão, inclusive muitos desses instrumentos confeccionados na fábrica da própria empresa e alguns deles projetados pelo Sr. José Guilherme.” – André Müzel, Maestro da Orquestra Sinfônica de Rio Claro.
“José Guilherme representa o músico talentoso e estudioso no seu instrumento preferido, o violão. Enquanto empresário, produziu e criou instrumentos incríveis, que servem à educação e formação de crianças, jovens e adultos, que têm a grande chance de estudar e se envolver com a música, tornando-se pessoas diferenciadas. A classe musical é e será sempre grata ao trabalho e dedicação do seu Zé Guilherme, exemplo que a todos cativa e encanta.” – William Nagib Filho, presidente da Orquestra Filarmônica de Rio Claro.
“Desde a primeira vez que fui à loja de música Jog, já me encantei com os dedilhados daquele senhor lá no canto, fazendo um som melodioso, sempre com harmonias abertas, em uma linguagem que hoje eu sei que se demora muito para aprender “quando” se tem professor, imagina em tempos pré internet, e absolutamente sozinho. Este é o verdadeiro dom, porque parece mágico, veio com a pessoa, faz parte dela, é ela. Este é o Sr. José Guilherme, um patrimônio que pulsa sem perder balanço, e toca profundamente nossos corações!” – violonista e produtor cultural.
“Sr. José Guilherme acabou se tornando ícone para músicos de Rio Claro e região, por conta de vários pontos, seu exemplo e resiliência à música a despeito da idade. E é isso que o mantém mais vivo do que nunca e também sua história de vida e persistência num negócio que prosperou até os dias de hoje e acabou influenciando muitos de nós. Pra mim o sr. Guilherme é um ícone mesmo não só para cidade, mas pessoalmente para minha vida e a família dele toda” – Maestro Luciano Barbosa Filho.
Por Vivian Guilherme