Cantos diversos
[Canto dos Mortos – segunda parte]
O mendigo
Vida do ser jogada
na calçada a se perder.
Frio imperador a corroer
tão feia figura danada.
Nada há para aquecer
o retirante na retirada.
Não é pessoa lembrada.
É gente para se esquecer.
Vida suja, desgraçada,
vivida, sem nada obter,
Jaz, no frio da calçada,
esquecido, o pobre ser.
O pequenino morto
Aquele, que era esperado,
veio, por caminho torto,
antes da data.
Vazios, agora,
o berço, o seio, os braços, a casa.
A ceifadeira cobriu de noite
a luz dos olhos cerrados
do pequenino morto.
Frágil menino
O pequenino e frágil menino,
filho único da viúva,
faleceu numa tarde de sol escondido,
enquanto a chuva caía
na rua de muito barro.
De breve lembrança
Quem te quis no mundo?
Que ventre te guardou por meses?
Que mãos te trouxeram à luz?
Que força te protegeu, então?
Nascido de mulher, já chegou sofrido.
Defeitos irreparáveis
marcavam o corpo frágil.
A alma também vinha com padecimentos.
Não viveu muito.
Mas, o tempo que viveu, sofreu.
Enterrado,
foi lembrado por breve tempo.
Depois,
a lembrança de poucos se foi aos poucos.
O mistério do quadro
Rosto de mulher exposto no quadro.
Sonho que passou na vida?
É só o rosto de mulher.
Tentar adivinhar quem foi
é criar outra que não ela.
Falar dela é traduzir
quem nunca foi.
Essa aquarela guarda mistérios.
Portanto,
deixai os mortos em paz.
Os mortos e os esquecidos
Sei de lamentos
doídos no coração.
De murmúrios
escondidos no peito.
De suspiros
exalados de dor oculta.
De cobiças
compostas com desilusão.
De destino
com surpresas criadas.
De viagens
esquecidas nas asas quebradas
de um Ícaro embriagado.
De imagens
destruídas, despedaçadas,
compondo restos de encenação.
Sei da vontade de recriar o sonho esqueci-do
entre os velhos que se foram
e os palhaços que ficaram.
Mas, quem pode recriar os sonhos?
Não os velhos, todos mortos.
Nem os palhaços, todos esquecidos.
O branco
Nascido branco,
filho do ódio, seu pai,
filho da maldade, sua mãe,
veste farda para matar.
Assassino é seu nome.
Ladrão, o sobrenome.
Com o inferno nas entranhas
asfixia o negro dominado
com o prazer de ferir e matar.
Fere e mata.
A farda, depois, à noite,
com preguiça e sem remorso,
vai dormir
esquecida da violenta
e amarga injustiça.