A história de minha mãe
Do que me lembro, e pelo que a minha mãe contava, a história dela começa aos quinze anos. Naquela época, o vestido era rosa, o céu era cor-de-rosa, o mundo era róseo, os sonhos surgiam rosados. E assim ela seguia. A poesia pairava no ar, nos sonhos que sonhava, na imaginação dos dias claros de sol. Para minha mãe parecia não haver chuva nem trovoadas. Nem malícia.
Adorava dançar ao som de Naná, cantada por Orlando Silva. “Naná é sonho que se fez mulher”. E com o Orlando, que deslizava pelo salão “como um cisne”. (Ela dizia. Será?)
Sonho vai, vida vem, casou-se com aquele que veio a ser meu pai.
Vida difícil. Pouco dinheiro. Nenhum sonho. Só esperança. “Quem tem fé vai esperar”, diria, depois, o nosso Vandré.
E a fé comandava a família.
Passados anos, minha mãe, em certo dia, foi ao centro da cidade comprar um não sei o quê. Depois, voltando, pegou o ônibus em frente à estação de trem.
Era dia claro de sol. Pouca gente no interior do coletivo. De repente, ela pensou ter reconhecido na pessoa do cobrador alguém do passado. Pensou: “Não pode ser. Ele calçava sapatos lustrosos. Esse aí usa alpercatas”.
Tornou a olhar. O homem desviou o olhar. “Será que é ele? Tão mal arrumado!”.
Mas, era ele, o Orlando, aquele usava brilhantina no cabelo e vestia terno impecável de linho. E como dançava. Era amável, elegante. “Será que é ele mesmo?”.
Dirigiu-se até a catraca para pagar a viagem. Ele pareceu hesitar em pegar o dinheiro. Tinha as mãos ofendidas por doença. Não sabia a minha mãe o que era. Reconhecendo-a, ele disse: “Há quanto tempo!”. Ela respondeu: “É mesmo. Há quanto tempo!”.
Teve receio de pegar o troco. Mas tinha que pegar. A doença seria contagiosa? E isso importava. Tinha que pegar o troco daquela mão que, no salão, a segurava com suavidade, conduzindo-a pelo salão, dançando juntos, ao som de Naná.
Quando o ônibus se foi pela avenida reta da cidade, minha mãe ficou ali, na calçada, chorando o lamentável destino de um sonho do passado. Chorando também por não ser mais a Naná.
E a vida fez a curva, agora, com as cores cinzas da desilusão.
Dezembro de 2020.
RÉQUIEM PARA MINHA MÃE
Repousa, eternamente, a minha mãe.
O silêncio não permite a troca de vozes.
Não há acenos.
Não há sorrisos.
Menos ainda as delícias da casa materna,
A escuridão é uma parede intransponível.
Não a vejo daqui.
Nem ela me vê de lá.
Estamos separados,
agora, por horas
que viram séculos.
Abençoada mãe
que virou luz
e ainda me ilumina.
O silêncio ecoa
na eterna escuridão.
Abençoada mãe, que agora descansa em paz.
Esse é o tributo que faço a minha mãe com o amor mais puro que existe.
Para sempre, minha mãe, seu filho.