Nanocontos
[V]
O nanoconto de Jaime Leitão, de número 151- “O pacote veio vazio”- tem muito a ver com a situação em que me vi quando dei um disquete da Dalva de Oliveira para o primo da minha amiga Bia. Depois que ele desembrulhou o pacotinho, reparou que não havia disquete na embalagem. Sem graça, ele veio me mostrar o acontecido. Mais sem graça ainda, peguei de volta a embalagem e prometi devolvê-la com o disquete da grande cantora nacional. Depois de uns dias, fiz isso. Ele gostou do que ouviu, mas fez questão de contar a gafe que eu dei. Involuntariamente, diga-se de passagem. Quem acredita em quem? A verdade é que o pacote foi vazio.
O nanoconto número 153 – “Comeu terra e gostou”. – tem muita pertinência com o caso em que a própria funcionária de um supermercado me contou: “O senhor não vai acreditar, mas eu comotijolo”. Não acreditei. Ela insistiu. Não poderia duvidar. Cada qual com o seu gosto, embora esse não me seja nada saboroso.
O nanoconto número 156 –“O ladrão foi roubado” está assentado no provérbio que diz: “Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”. Agora, alguém pode negar que, sendo o governo uma grande ave de rapina, já não teve a intenção de sonegar, ainda que só um pouquinho, para pagar menos imposto de renda? É claro que depois se arrependeu e, declarando corretamente, pagou o que era devido pagar.
O nanoconto número 168 –“Bateu na trave” tem correspondência com o caso de um meu assistente, Eduardo, que, além de trabalhar bem, era esforçado e vinha participando de vários concursos com vista a se tornar Juiz de Direito. Estudava horas a fio, lia jurisprudência, leis, decretos e comentários. Tinha aula virtualmente. Não cessava um dia. O domingo também era ocupado por estudos. Toda vez que ele voltava da via sacra concursal dizia-me que havia batido na trave e não lograra obter a nota que necessitava para passar para a outra etapa. Soube que havia desistido de prosseguir nesse empenho inglório. Tem gente que, apesar do esforço hercúleo, sempre bate na trave.
O nanoconto número 173- “Ela bateu nele na rua”- tem ecos em minha memória. A mulher do seu Zé, dono do bar que ficava no meio do quarteirão da rua 5, entre as avenidas 15 e 17, nesta cidade, era calma e de boa paz. Um dia, porém, e sem a gente saber o que, de fato, acontecera no interior do bar, o bêbado saiu de lá a vassouradas. Eram certeiros golpes aplicados pela mulher que se tornara uma guerreira, brandindo a sua arma doméstica contra aquele ofensor de seu marido. Ela batia, e bateu impiedosamente, no bêbado na rua. E seu Zé, que sempre foi homem “nervosinho”, naquele dia ficara suspenso em uma revolta, e nada fizera para afastar o mau elemento de seu estabelecimento. Sorte dele que sua mulher era valente o suficiente para solucionar o impasse, então verificado. Cenas da vida doméstica.
O nanoconto número 186 –“Fui. Cheguei”. Impõe duas realidades. A realidade do ir, em que há despedida, e a de chegar, em que há abraços. São duas cenas opostas. O passo dado, que parece lento, flui e, sem se dar conta, passa-se a estar no lado oposto ao do local do qual se saiu.
Para me fazer entender melhor, penso que há de servir o meu poema “A Estrada”: “Tem mistério a estrada/ em mim escondida/ que já é vida marcada, /Que já é marca sofrida./E o mistério que tem a estrada/ É o de existir sem ter fim./Mesmo quando se dá por acabada,/ de novo tem início em mim”. (extraído do “Canto de Recados”, que faz parte do livro “Cantos Diversos”).
Nesses versos transparece a imediatidade da viagem dos passos. Só se dará conta desse percurso depois de muito andar, ou muito depois de haver andado. De todo modo, a estrada está na pessoa, quer ela queira ou não. E a estrada é o tempo. E o tempo não abandona nem as coisas nem as pessoas. A tudo leva. Ontem eu fui embora. Um tempo depois cheguei. Por enquanto, aqui estou.