Nanocontos
[III]
Continuando os meus comentários dos nanocontos do Jaime Leitão, chego ao nanoconto de número 44: “Aprendeu a não ser”. É significativo por realçar o envolvimento da pessoa pela humildade.
A Lica, prima de minha avó, a Bela, que era muda e surda, passou, com o tempo, a ficar em seu cantinho como se fosse uma sombra, sem pesar, e quando andava pela casa, ia devagarinho, sem reclamações. Era um ser não sendo; um ser desaparecendo pelas vias do tempo. Deixou-nos em silêncio. Dela ficou a lição de que se deve caminhar para deixar-se de ser. Pura humildade (a dela!).
O nanoconto número 55- “Afundou o próprio navio”- corresponde à cena do afogado que cometeu suicídio.
O nanoconto número 56 – “Desleu todos os livros” corresponde ao caso em que mentes brilhantes, estando envelhecidas, vão perdendo a memória de tudo o que leram, ouviram e assistiram. O envelhecimento não tem piedade do conhecimento nem do entendimento. Há crueldade nisso. É da natureza. Sendo assim, cada um que ficar com a memória entrada no esquecimento, estará certamente “deslendo” os livros que leu, os filmes que viu, as canções que ouviu e, assim, com tudo. É o afundamento. E ponto final.
O nanoconto número 61-“Sentiu o aroma da luz”- que, fisicamente me parece impossível, torna possível se dissermos que luz é vida, a possibilitar, então, que sintamos o aroma da vida. O mundo tem cheiro por ter vida, pois é a vida que permite que se sinta o cheiro do mundo. Bela imagem metafísica contida nesse nanoconto.
O nanoconto número 88- “O russso falou grego”- tem muito a ver com o caso em que meu pai se viu envolvido. Ele estava ouvindo o interloctutor falar e não estava entendendo nada. Então, no meio da diálogo, meu pai disse ao outro- “Fale em jangada que é pau que boia”. Ou seja, fale claramente. No caso, o homem estava falando grego mesmo. Do que eu me lembro, meu pai saiu sem os esclarecimentos que ele queria. Foi procurar a resposta com outra pessoa que de preferência falasse de forma mais clara, não tão confusa.
O nanoconto número 93 “Caminhou até o zero”- diz muito das pessoas que, por motivos vários, deixam tudo de lado e, ultrapassando os laços familiares, sociais e de trabalho, vão viver nas ruas das cidades, tornando-se absolutamente irreconhecíveis. Basta, para isso, dar uma olhada para a região onde se instalou a cracolândia, sem que se tenha uma solução para os que lá frequentam.
O nanoconto número 94-´”Roubou dez centavos”- é a história do miserável furtando do pobre. Pouco a dizer.
O nanoconto número 96- “Casou, separou na festa”-tem muita relação com o casamento realizado entre uma judia e um crente. Na volta da lua de mel, o casal se separou. Não foi durante a festa, foi após. E o motivo foi a incompatibilidade religiosa. Opiniões radicalmente diversas e, por isso, inconciliáveis.
O nanoconto número 99: “Ludibriou a luz”- me faz lembrar do caso de um carpinteiro, contratado para fazer uma escada em minha casa[JL1] , em Valinhos, que tinha de se proteger do sol a conselho médico para evitar câncer de pele. Tinha horror à luz do sol. Procurava sempre trabalhar à sombra dos telhados. De um modo simples, procurava enganar o sol. Não era fácil Mas, assim, seguiu vivendo a sua vida procurando se esconder do sol.
O nanoconto número 102- “Comeu pão ácido” faz-me lembrar do “pão ázimo”, que os hebreus levaram ao deixar o Egito, porque não tiveram tempo de aguardar a fermentação e, por isso, fizeram o pão sem fermento.
No caso do conto, sobressai o pão azedo e não o pão amargo. Todavia, azedo ou amargo, esse pão resulta de muita luta e da pouca ou nenhuma vitória. Mas, quem leva a carga pesada e aufere quase nada, sabidamente come ou do pão azedo ou do pão amargo. Não há outra possibilidade de escolha.