Bilhetes de um tempo
[XVII]
Chegada a idade dos dezoito anos, fomos chamados para integrar o Tiro de Guerra (TG-040), sob o comando do sargento Mineo e do sargento Iuri.
Nós éramos chamados por eles de ‘mocorongo’. Nada gentil. Mas, tudo bem, até porque não era tão ofensivo assim.
Saindo da linha, a autoridade militar colocava o sujeito de guarda. Não tinha perdão.
O ‘quartel’ ficava lá perto do cemitério. E de madrugada, no inverno, era bem sinistro ficar naquele ambiente taciturno.Algumas histórias me marcaram (e que não foram de terror).
A primeira delas, refere-se à japona. O Exército é tão pobre que não fornece material para os soldados. Precisei comprar minha farda. Tinha, ainda, a do meu irmão, que fez o Tiro de Guerra dois anos antes.
Não sei o motivo, o sargento Mineo sorteou japonas entre os recrutas. E tive a sorte de ser sorteado com uma delas. No final do ano, eu a devolvi. Era o combinado. Não importa. Ela me serviu no inverno. Era parte do uniforme. Meus colegas colocavam roupas por baixo para não sofrer de frio.
Fazíamos marchas regulares. O Daquino, que era menino franzino, marchava com o fuzil apontado para baixo. Não estava aguentando levar a arma. O Jofre (assim chamado porque parecia um boxeador) pegou o fuzil das mãos do Daquino e passou a marchar com dois fuzis. Parecia uma pessoa heroica, enquanto o Daquino surgia com uma figura frágil, porém, não ofendida. O Daquino era pessoa intelectual demais para estar em outro canto que não o Exército. (Onde será que o Daquino esteve ou está?). Tenho que dizer isso, agora: Nós éramos bons parceiros, o Daquino, o Álvaro Escrivão e eu. O pai do Daquino, que gostava de cachimbo, costumava passear com seu carro – não me lembro da marca – que seguia mansamente pelas ruas de Rio Claro. Deixo anotado que nunca fui tão feliz como quando andei em companhia desse meus companheiros no carro do pai do Daquino, que morava na Rua 5, próximo à casa do Dr. Ursaia, pai de filhas lindas, muito lindas.
Em caminhadas prolongadas, o sargento sempre dizia – nada de meias furadas e levem o cantil cheio de água.
Isso todo mundo observou. Porém, a vida tem circunstâncias que não se encontram regradas.
Não sei exatamente como ocorreu, mas, o certo é que um dos soldados quebrou o fuzil ao tentar matar um cobra que, surgindo em cima de uma grande pedra, o assustou. O sargento não quis saber. Disse para o recruta – você vai pagar o patrimônio danificado do Estado. (Acho que foi isso que ele disse. Mas, se não disse, não tem importância. O recruta pagou o valor do prejuízo do Estado.)
Um fato me deixou intrigado. O cara que era gordo e se achava o mais forte dos recrutas, desafiou um outro, que era magro, sossegado, e não tinha muita expressão entre os demais soldados do TG – 040.
Bem, começou o jogo braço de ferro. O gordão não mexia o braço do magro. O gordão saía da mesa e voltava e tentava e nada. Não tinha jeito. O magro se mostrou inabalável. Depois de tenta aqui, tenta ali, o gordão desistiu. Deu-se por vencido. (O impressionante é que até hoje eu não sei o nome desses ‘competidores’.)
De sobra, aconteceu que o sargento Mineo, vendo uma foto do pelotão, que desfilava, queria dar guarda para todos os que estavam à frente porque seguiam com os pés direitos elevados, enquanto o pessoal de trás seguia com os pés esquerdos elevados. Quem estaria errado? Pedia a palavra ao sargento, que a concedeu. Argumentei que, como nós estamos à frente do nosso pelotão, seguíamos os passos dos últimos que integravam o pelotão que seguia adiante. Essa explicação convenceu a nossa autoridade militar. E, com isso, escapei de fazer guarda. Eu, só, não; os três primeiros de nosso pelotão. (Será que eu tenho essa fotografia, ainda? Acho que não. Também, não tem importância. A justiça se fez apegada ao argumento lógico, porém, sem que tivesse sido comprovado por outras provas. Na verdade, o sargento aceitou o argumento como correto. Assim é a vida. No caso, valeram mais as minhas palavras que a simples imagem que todos viam impressa.)
Por último, digo, com piedade, que o Brasil seria melhor país se investisse, por princípio, em educação, trabalho e segurança.
O sargento Iuri, visando saber quem sabia alguma coisa de geografia, colocou o mapa do Brasil na parte da frente das salas, enquanto os recrutas, aleatoriamente, ficavam sentados.
E começou a chamar pelo número de cada solado. O meu era o n. 129.
Mas, o sargento, matreiro, não chamava os alunos do Ribeiro, por exemplo, eu, o Álvaro Escrivão, o Daquino e outros; chamava os verdadeiros ‘mocorongos’.
“Fulano de tal, onde fica o Estado de Alagoas?”. O coitado, perdido nas fronteiras do mapa, começava de baixo, ou seja, pelo Rio Grande do Sul e ia devagarinho, lendo o nome de cada unidade federativa. E não chegava nunca. Nenhum sargento tem a paciência de um pai paciencioso. E dizia – “Está de guarda”. E o coitado, sob a risada dos colegas, não tinha por onde escapar. Montava guarda. E assim outro, e outro.
Se você não tem padrinho, morre pagão. Outra coisa – “no Exército, pobre tem que ter imaginação ou padrinho”.
Não há dúvida de que foi esse um bom tempo. Tempo em que servi no TG- 040, como recruta, aos cuidados dos sargentos Mineo e Iuri, grandes pessoas que nos fizeram pessoas melhores do que éramos.
Foi mesmo um bom tempo.