Bilhetes de um tempo
[XVI]
Esse, um álbum das fotografias de memória, em que algumas delas se mostram amareladas e, outras, esbranquiçadas. Por isso, tenho pouca nitidez para falar de todas as pessoas que lá moraram e de tudo o que vivi naquele ponto do bairro de minha Cidade Azul.
Mas, para que não fique totalmente deslembrado esse tempo lendário da vida, deixei enquadrado em versos, essa pequenina poesia, que pra mim me diz muito:
No azul céu
da cidade azul
baila
o azul maranhão
do menino azul
E segue a vida entre os dias e as noites de um mundo que gira.
[XVII]
Saio dessa rua 5 e me vejo na casa de minha avó Amélia Correia, na avenida 7, entre as ruas 2 e 3.
Ao lado, morava a Dona Domingas, em uma casa de esquina. Só a família Ratin possuía telefone. Naquela época, uma chamada interurbana, por exemplo, para São Paulo, demorava horas. A telefonista chamaria quando se completasse a ligação. E a espera era mais longa por causa da ansiedade.
Em frente, morava a família do fazendeiro Oscar Hidelbrand, casado com a Doris Cassab, pais da Dorinha (grande pessoa), a Sueli, a Silvia, a Marli e o Zé Oscar (o último filho). Mais ao lado, ficava a Mecânica do Letízio. E, mais adiante, a casa de secos e molhados da Letícia Barsotti, filha de Dona Gertrudes. O irmão da Letícia era tenor e cantava bonito as canções sacras na igreja matriz.
Lá na esquina com a rua 3, via-se a oficina que fabricava charretes. Em frente à oficina, morava o velho Leonardo (o Lelé, dono da oficina com os filhos) e a sua mulher, Dona Maria (que minha avó para falar dela dizia, “É a Maria do Lelé”) e os netos, Leonardo e Rubinho, e mais a pessoa boa da Anita.
A casa de minha avó Bela, sem garagem, possuía à frente, além da porta alta e estreita, dois janelões, que davam para os quartos. Entrava-se por um pequeno corredor, ganhando a sala, em que havia um conjunto de cadeiras e sofá de palhinha, mais a mesa de jantar, a cristaleira e uma cômoda cm tampo de mármore. E na parede, no alto, via-se um grande rádio, que só os adultos podiam mexer. Também no alto, o velho relógio de parede marcava as horas com algarismos romanos. E as badaladas eram serenas e compunham o dia com religiosidade. Agora, essas badaladas se mostram distantes, quase não as identifico bem. À esquerda da sala, estavam os quartos. Adentrando o imóvel, ganhava-se a cozinha, onde havia um fogão de ferro, a mesa, onde as massas eram feitas para a macarronada (espaguete, nhoque, capelete, ravioli), e tortas de galinha e palmito. Nunca mais comi massa melhor, nem torta igual. Só a minha avó, com a ajuda da Lica, poderia perpetuar a delícia da gastronomia familiar. E isso num tempo em que a geladeira não compunha o cenário da cozinha.
Indo-se, mais para frente, chegava-se ao banheiro, em que não se encontra instalado o chuveiro elétrico. Tomava-se banho de bacia e canequinha. Tempos outros e inimagináveis.
No quintal, havia um pequenino pomar: a bananeira, o pé de manga, o goiabeira, a árvore da fruta do conde. E, além, o galinheiro. Nele, pintinhos, frangos, galinhas, galos, perus.
E o meu irmão se deliciava em pegar a ave indicada pela minha avó para ser a refeição do dia. Tinha agilidade para caçar aquelas aves. Realmente, tinha.
A Lica, pobre Lica, que era muda e surda, e que também ali morava, esquentava a água para depenar a galinha já morta. E depenava sem sentir dor nos dedos.
Fiz isso e me dei mal. A água quente queimou meus dedos. Nunca mais quis depenar galinhas. Era ali um mundo encantado, porque nele havia a magia criada pela minha avó, com seu amor imenso, e que permitia que nós, os netos, nos sentíssemos acolhidos. E quem eram os netos da Bela? Eu, meu irmão e os primos Valderez e Ricardo D’Abronzo (filhos de minha tia Hebe).