Bilhetes de um tempo
[VIII]
Em frente de casa, morava a família do Henrique Mazziotti. Lembro-me dele na cama, doente. Certo dia, levaram para dentro do quarto dele, com janela para a rua, um filme mudo do julgamento e morte de Jesus Cristo. A tela era pequena. Mas, o colorido era bastante expressivo. Os meninos, do lado de fora, e em pé, ficavam assistindo o filme religioso. Meses depois, o enfermo faleceu. Ele era casado com a Regina, que fazia as melhores empadinhas de frango que eu comi em toda a minha vida. E o Gusto, o caçula, saía para vendê-las pelos cantos da cidade, as inesquecíveis empadinhas da santa Regina Mazziotti. Ao lado da casa do Gusto, residiam a Iolanda Belam, o marido e o filho Rafael, um pouco mais velho que o meu irmão. Eles eram donos do insuportável Tupi, um cachorro, que, quando me via, sempre queria me morder, eu que, sempre, evitava me aproximar de cachorros. Meu irmão, por um dom divino, alisava qualquer cão, grande ou pequeno, inclusive esse odiável Tupi.
[IX]
Ao lado de minha casa morava o seu Castelo, homem trabalhador, de força invejável, sempre silencioso, pessoa honrada e incansável. Era casado com a Dona Florença, uma senhora clara, e tão boa era que nunca reclamou das minhas e das traquinagens de meu irmão à minha mãe. Verdadeira santa. Eram eles pais da Janete, que se casou com o Piva. Gente que se perdeu na história daquela rua, hoje tão desigual e, igualmente, tão deslembrada.
Do outro lado, pulando uma casa, morava a família do seu Carandina. O velho Carandina era ótima pessoa. Mas, gostava de pingar de bar em bar. Fazia essa mesma via, à tarde, todos os dias, quando voltava do trabalho. Eram muitas as paradas. A embriaguez provocada fazia o homem cambalear pela rua.
Certa noite, lá pelas sete horas, fui falar com a dona Adelaide, mulher dele, e o filho Tutu. O velho ordenou que me sentasse à mesa e jantasse com ele. Só que eu já havia jantado. Frente àquele prato com arroz, feijão, carne e salada, eu não tinha nenhuma chance de enfrentar. Sem fome, impossível estabelecer o duelo entre o garfo e o alimento do prato. Num instante em que ele vacilou, ao olhar do outro lado, saí da mesa e corri para fora da casa e voltei para a minha. No dia seguinte, a dona Adelaide, em conversa com a minha mãe, dava risada do apuro que eu passei. E, outra vez, à tarde, lá vinha o velho Carandina parando de bar em bar, como abelha vai de flor em flor. E, outra vez, a cachaça ia levando em ondas aquele corpo velho e cansado da vida e de todos. Pobre criatura que só fez mal a si mesmo.
[X]
Na esquina da rua 5 com a avenida 17 havia um terreno murado. Do outro lado da calçada, também na esquina, moravam os irmãos (a linda) Samira, Saminho, Paulinho e Cristina, além da irmã mais velha Palmira (acredito).
Do lado oposto, também de esquina, estava a casa da Ritinha (pra quem fiz um maranhão azul; desgraçadamente, parecia um papa-vento, de tantas piruetas que deu. Que loucura!). Na casa de esquina, lado direito da rua, de quem vinha da avenida 19 para a avenida 17, morou o Zé Luis Buschinelli, que não brincara naquelas ruas da infância.
Pegado a essa casa, morou, ali, o guarda rodoviário Gil, casado com a dona Carmem, pais de campões.
Na casa mais abaixo, vieram morar, primeiro a família Coelho: o Antonio Carlos (que gostava de cantar e se apresentou, inclusive, num programa de gincana da Record), o Ruizinho, a Everlindinha e mais uma irmãzinha pequena, da família Coelho. Eles eram primos do Fernando Coelho, casado com a Maria Clara Castellano Pieroni. Depois, vieram a Dinorá, a Sônia e a Léa (essa menina era uma deusa loira no meio dos meninos queimados de sol ou assim nascidos. Linda, maravilhosa).