Hoje as redes sociais trazem posts de apoio à mobilização militar que, conforme se registra, livrou o país de um golpe comunista em março de 1964. Por sua vez, defensores da esquerda não estão se manifestando de maneira contrária na mesma intensidade como se fazia em tempos anteriores. Independente de versões, seguem aqui registros de como o episódio aconteceu em Rio Claro.
O caso
Na data, o país estava gravemente conturbado politicamente. A crise vinha evoluindo desde há dez anos. A expectativa era de onde viria um golpe que mudasse as regras constitucionais: da esquerda ou da direita? Com apoio da classe média, os militares de direita tomaram a iniciativa. A sequência está nos livros de história e as consequências ressurgem no atual debate da chamada polarização política em cena.
Em Rio Claro
Março de 1964 já havia sido muito quente para a Câmara Municipal de Rio Claro. A temperatura que seguira alta ao longo do mês chega à combustão em abril. Vereadores e suplentes são devorados pelas chamas da política. Enquanto militares marchavam pelas ruas e campos do País, a Câmara Municipal toma a iniciativa de cassar mandatos daqueles considerados simpáticos à esquerda.
O quadro
Um vereador renuncia ao mandato para evitar a prisão, dois outros são cassados com mais 17 suplentes. No total, foram 19 cassações e uma renúncia. Era o início dos expurgos do regime militar em sua versão local.
Consolidado o golpe de direita para contrapor-se ao esperado golpe comunista, já no dia 1º de abril foi convocada sessão extraordinária cuja pauta cuidava de providenciar uma “tomada de posição em consonância às gloriosas tradições de defesa dos postulados democráticos”, de acordo com a convocação do presidente. No ar sempre ficou a pergunta: como já teriam convocado a sessão se o golpe nem se concretizara?
O setor político dos conservadores locais, seja como for, alinhou-se imediatamente ao poder militar, não poupando seus integrantes supostamente vinculados ao comunismo internacional. Na prática, os ideologicamente suspeitos eram representantes do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e do Partido Republicano (PR).
Depois
Anos mais tarde, os cassadores iriam considerar que houvera precipitação. Os anteriormente considerados perigosos esquerdistas passaram a ser admitidos apenas como “jovens idealistas”. No geral, eram ferroviários empolgados com causas trabalhistas. Alguns defendiam a legalidade, ou seja, a sustentação constitucional do presidente Jango. Por isso foram cassados.
Muitos se arrependeram das cassações de colegas e, ao final do regime militar, participaram das campanhas de retorno à democracia. Em meio ao calor das chamas incendiárias do populismo de 1964 qualquer tomada de posição era difícil. Ninguém sabia exatamente o que iria acontecer mais à frente. A preocupação principal era evitar a possibilidade de uma guerra civil.
Passeata
Dias antes, mulheres rio-clarenses, donas de casa e representantes da classe média, por motivação católica, haviam participado de passeata pelas ruas centrais clamando contra o governo Jango. O evento aconteceu no dia 19 de abril, simultaneamente à Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que no centro de São Paulo reuniu mais de 500 mil pessoas. Era dia de São José, protetor da família.
Em uníssono, as rio-clarenses repetiam dois bordões, “Um, dois, três, Brizola no xadrez” e “Verde e amarelo, sem foice nem martelo”. A marca ideológica da passeata que circundou a Praça da Liberdade e o Jardim Público esteve reservada aos organizadores. No demais, a mobilização concentrava mães apavoradas diante da possibilidade de verem maridos e filhos convocados para uma guerra incompreensível. O País estava sob domínio de uma guerra de propaganda.
Na Câmara
A sessão extraordinária, convocada para o dia 1º, desdobrou-se em várias até o final do mês. As discussões tensas contavam com presença policial para garantir que o resultado se limitasse ao esperado: cassações. O principal projeto de expurgo foi aprovado por unanimidade.
Passado um ano do ocorrido e serenados os ânimos, alguns vereadores manifestaram-se favoravelmente à anulação dos efeitos da decisão anterior. Requerimento para tanto alegava que as acusações em que se basearam as cassações eram improcedentes. O efeito da propaganda se dissipava.
A tentativa revelou-se infrutífera. O grupo de vereadores ideológicos de fato, avessos ao trabalhismo de tonalidade socialista, jogou pesado contra a ideia. Requereu que a presidência da Câmara Municipal desse conhecimento às autoridades militares e policiais da disposição daqueles que pretendiam “anistiar” os condenados em atitude que viria a favorecer a “marcha da subversão e contrarrevolução em nossa cidade”. Ficou tudo como estava.
Os nomes
O prefeito na época era Augusto Schmidt Filho. A Câmara Municipal era integrada por: Marcello Mesquita (presidente), Roberto César, Adhemar Catuzzo, Ângelo Dagnone, Aníbal Fuzzetti, Aníbal Gulo, Antonio Maria Marrote, Dinael Marin, Evandro Mastricico, Fausto Pacheco Aguirre, Hélio Jorge dos Santos, Irineu de Oliveira Prado, Januário Sylvio Pezzotti, Joaquim Abdala, José Caprets, José Crespo, Manoel José Silva, Pedro Kury, Ribeiro Mancuso, Taufick Simão e Waldemar Karam.
Os cassados
Dos três vereadores que ficaram sem o mandato, José Crespo renunciou. Aníbal Fuzzetti e Irineu de Oliveira Prado foram cassados. Irineu Prado voltou na legislatura seguinte com novo mandato, reeleito.
Os suplentes cassados foram: Irineu Barroti; Irlandino Mattos; Antonio de Almeida; Antonio Humberto César; Jedaias Norberto da Silva; Raimundo Pina de Menezes; Virgílio Lorenzetti; Herzílio Coriguazi Pereira Júnior; Sebastiano Diuri; David Moncaio; Waldomiro de Araújo; Domingo Antonio Seco; Sebastião Rodrigues; Alfredo Lucitti; Otávio Bueno; Antonio Albiazetti e Alcindo Silva.
Hoje
Entre fatos e versões, conclusões menos apaixonadas sobre o regime militar sugerem depender de tempo. Instituições públicas e civis ainda vasculham arquivos e memórias para necessárias exposições. Só agora, por exemplo, radicais da época chegam a admitir propósitos, alguns isolados, por uma ditadura de esquerda para contrapor-se à direita. Liberais, por sua vez, preferem considerar que os ideias democráticos de 1964 teriam sido desvirtuados pela linha dura do regime a partir de 1968. Outros preferem crer que na luta contra o comunismo uma ditadura de direita se justifica.
Mundo
Para entender o caso, uma consideração pode ser útil. Os países latino-americanos estavam sob o efeito da Guerra Fria imperialista entre os Estados Unidos e a União Soviética. Não havia meio termo no vale tudo.
A estratégia da Guerra Fria sempre foi dividir os povos internamente para sobre eles manter o domínio. Os brasileiros renderam-se a este jogo, o mesmo que, simultaneamente, impôs ditaduras de direita na maioria dos países do continente.
O motivo de tal submissão não poderia ser mais concreto. Dois anos antes o mundo escapara da primeira e última guerra nuclear. O apocalipse foi evitado por John Kennedy, que fez Nikita Kruschev retirar mísseis soviéticos que vinham sendo instalados em Cuba. Nunca houve um prognóstico sobre o restaria do mundo se ambos os lados deflagrassem a guerra nuclear, inevitável se Kruschev não voltasse atrás.
Vencida a intromissão soviética nos quintais latinos dos Estados Unidos, os países do continente foram fechados de Norte a Sul com ditaduras de direita. O conflito da Guerra Fria foi concentrado no Vietnam.
Como em uma guerra a primeira vítima sempre é a verdade, saber exatamente o que se passou ainda dependerá de prospecção. Basta ver que só após Gorbachev o mundo tomou conhecimento do que se passava por trás da Cortina de Ferro assassina de Stalin, a começar da Rússia e depois na Polônia.
Sob a eficiente propaganda americana, ser comunista tornou-se no ocidente sinônimo do pior que poderia haver no mundo. Na vala comum imposta a todos, jovens latinos, idealistas, preocupados com soberania de seus países, foram tratados da mesma forma que alucinados terroristas. Ao final, tudo virou um banho de sangue, sobretudo na Argentina e no Chile.
Se no Brasil nem tanto, o terrorismo de direita, que também existiu, retaliado pela esquerda, deixou marcas, traumas e incógnitas sepulturas.
Resultantes da propaganda ideológica no País mobilizaram a cena política de Rio Claro entre março e abril de 1964. Jovens idealistas, sindicalistas e alguns entusiastas da história viram-se, por isso, associados ao comunismo.
Em 2014 a Câmara Municipal restituiu simbolicamente os mandatos aos cassados de 1964 em sessão histórica.
Por J.R.Sant´Ana / Foto: Divulgação