Hoje
Questões étnicas e religiosas desafiam a política em todo mundo. A democracia encontra-se em xeque, envolta entre forças fundamentalistas, racistas, xenófobas, nacionalistas e autoritárias. Povos temem por sua segurança e integridade.
Resistência
Neste quadro, a busca por integração cultural torna-se instrumento de resistência à redução das pessoas à condição estatística de uma sociedade de massa cega e manipulável.
Rio Claro
Em tempos de necessário armistício cultural, com os crescentes riscos ao direito de identidade, a história de Rio Claro contribui para avaliar a influência da corrupção moral paulista sobre ética nacional. Para tanto, aqui, a segregação imposta à cultura negra nos séculos XIX e XX é tomada como ponto de partida para futuras pesquisas.
Ao longo do texto estará alinhavada a tentativa de localizar no processo abolicionista raízes da atávica discriminação em relação à etnia negra quanto a suas expressões culturais e, simbolicamente, aos cultos de matriz africana.
Falsa consciência
Já não é sem tempo a necessidade de dissolver a mistificação de que Rio Claro tenha sido precursora nacional na Abolição. As evidências mostram o contrário na revisão dos fatos.
O fato
O Brasil foi o último país do mundo moderno a abolir o trabalho de prisioneiros africanos. O abolicionismo no País às portas do século XX, enquanto Europa e Estados Unidos fermentavam politicamente com a consolidação dos direitos trabalhistas, referenda o atraso nacional. Falar de pioneirismo nesse quadro é falsa consciência, é ideologia de roça.
Última do último
A atual região Sudeste do País e a do estado de São Paulo, com Rio Claro no eixo, foi o último reduto da escravidão no Brasil. Em 1870 a lavoura do café paulista recolhia os últimos escravos do País porque a “importação” estava proibida desde 1850. A região de Rio Claro, portanto, foi a última entre as últimas a libertar seus trabalhadores prisioneiros. Fazendeiros do café resistiram à libertação até o último momento. O abolicionismo que houve foi de última hora. O fim da escravidão já era irreversível. Warren Dean (1977) detalha a questão com minúcias.
Efeitos da última hora
Assim observado, cabe assinalar que o interior paulista foi formado no pior momento na escravidão, o mais discriminatório e o mais tenso. Isto porque o sistema estava falindo sem que houvesse proposta alternativa. A rebelião de escravos e a pressão abolicionista comprometiam a segurança nacional, para o que a resposta dos fazendeiros era a repressão e condenação de tudo que se vinculasse à cultura negra. Tal quadro de falta de projeto contribuiu para um recorrente expediente de burlas éticas que acabou se incorporando ao perfil nacional.
É deste momento que se pode localizar raízes de comprometimento ético que até hoje influem de forma negativa sobre a moral nacional. Manuela Carneiro da Cunha (2012) e Sidney Chalhoub (2012) oferecem recursos para ampliar o assunto.
Comportamento
A história da legislação nacional do período, corrompida pelos interesses contrários ao trabalho livre e à economia de mercado, tem como herança a impunidade, a mentalidade escrava, a idolatria ao poder político, a supremacia estatal, o elitismo reacionário, a má distribuição de renda, o desprezo à educação popular. E por aí vai.
Os conflitos entre escravismo e abolição, vistos como justificativas para as burlas éticas que evitassem a bancarrota da economia do café, destilaram comportamentos sociais que, ao se instalarem na cultural nacional, explicam o famoso jeitinho brasileiro, o espírito de levar vantagem, o ceticismo em relação à Justiça, o velado racismo e a aversão às culturas primitivas, entre elas os cultos animistas da mitologia africana, como o candomblé e outros, por exemplo.
A coisa vem lá detrás. Então, é preciso revê-la desde suas raízes, em detalhes.
Na história
A história da escravidão no Brasil se divide em duas partes. Antes e depois de 1850.
A data marca a proibição de se trazer mais africanos para serem escravos no Brasil. Fim da importação. Era o início do fim da escravatura. Mas o pessoal ainda iria empurrar o problema com a barriga por quase quarenta anos. Empurrar o atraso.
É importante salientar que o município de Rio Claro estava se formando naquele momento. As fazendas locais deixavam a cana de açúcar para plantar café, as primeiras tentativas de promover o trabalho de imigrantes não estavam dando certo, a Câmara Municipal acabara de ser instalada e geria a autonomia política local. Enfim, a política municipal nascia sob a proibição do tráfico e teria que conviver com isso, mesmo que dependendo cada vez mais de escravos.
Na verdade, o tratado proibitivo já existia desde 1831, mas era um fracasso por falta de aplicação, decorrente da conivência corrupta do Estado com os interesses dos fazendeiros e de mercadores de escravos, que financiavam o governo. Leia-se bem, já existia iniciativa proibitiva, mas ninguém se preocupava com ela. Era a chamada “lei para inglês ver”, ou seja, um faz de conta para se mostrar em dia com as regras do mundo moderno. Mas sem efeito.
Ao ser retomada como lei em 1850, a medida atendia a imposição da Inglaterra. Coisa que merece atenção, pela iniciativa não se tratar de mérito nacional. Muito pelo contrário. Alegando que a soberania nacional estava sendo ferida, fazendeiros se articularam na promoção do tráfico ilegal. Burlavam o compromisso assumido com a Inglaterra. Por efeito da lei, a entrada de africanos no País aumentou. Isto porque os fazendeiros estavam fazendo estoque diante da insegurança do futuro. Vem de longe a impressão de que no País as coisas funcionam ao contrário.
Mão visível
Na época, a Inglaterra despertava para a política de mercado e também trabalhista. Face à Revolução Industrial e já sujeita a pressões internas devido a questões éticas e reivindicações socialistas e religiosas, o império inglês se cuidava. Concluíra pela necessidade de não aceitar no mercado internacional concorrência de países que faturassem com mão de obra escrava. Foco direto no Brasil.
Assim, os ingleses projetaram sua expansão comercial. Para tanto dependiam de que países satélites, Brasil direto no foco, tivessem assalariados para comprar produtos ingleses. Isto implicava na legalização do trabalho.
É pertinente notar que, por sua vez, a legislação trabalhista brasileira só foi instituída cem anos depois, quando os fazendeiros do café perderam o poder para Getúlio Vargas em 1930. Eis aí traço do pensamento conservador paulista, que até então, com seu aliado mineiro, se notabilizou por entender a questão trabalhista como caso de polícia.
Moral
Algo do caráter nacional foi formado a partir da intenção brasileira de burlar a legislação imposta pelos ingleses.
A experiência acabou instituindo o estigma de que “lei é coisa para inglês ver” e de que internamente as coisas devem ser resolvidas do jeito que der, dançando-se conforme a música. Na prática, instituiu a informalidade do jeitinho brasileiro, com suas burlas. Em grau maior, estimulou o cinismo e a hipocrisia. A descrença na Justiça.
Encrenca
Experientes em vigarice, os ingleses responderam com rigor ao pretensioso jeitinho brasileiro. Diante da gritante corrupção e pirataria, resolveram fazer cumprir a lei por conta própria. Tornaram-se policiais das costas brasileiras. Prendiam navios. Libertavam escravos. Bombardeavam focos de resistência. Não deram moleza. Cortes inglesas julgavam brasileiros. A moral nacional falia diante as intervenções inglesas com seus flagrantes e as prisões que faziam. Os bons políticos envergonhavam-se disso. As relações diplomáticas ficaram abaladas. Contra a escravidão, mas submisso a ela, D. Pedro II pagava mico. Morria de vergonha. Da celeuma toda é possível localizar a raiz da falta de caráter do brasileiro misturada a um difuso sentimento de culpa e de inferioridade.
Cenário
No Norte e Nordeste do País a escravidão já havia acabado. Não por motivos legais, mas porque a economia do açúcar caducara por falta de projeto.
Devido à proibição de trazer novos africanos para o País, os paulistas passaram a comprar os escravos restantes no País, sem dispensar o contrabando. Pela lei, os negros traficados, ou seja, trazidos ilegalmente, já eram homens livres. O que significa que os fazendeiros estavam utilizando negros livres como escravos. A evidência fomentava tensão e insuflava o abolicionismo, que condenava moralmente os traficantes. A panela de pressão começou a arder.
Violência e racismo
Nisso tudo, por alegada questão de segurança, a cultura negra acabou sendo proibida por lei. Religião, dança em público e capoeira eram reprimidas pelas forças do Estado. Para se ter ideia do clima, basta lembrar que leis de exceção, avessas à Constituição, instituíram a pena de morte e a tortura para escravos, “se necessária”.
Entre os brancos a situação se tornou de paranóia diante às perspectivas de revoltas nas fazendas. O motivo de tal medo é conhecido. Está nos livros de história. Negros e pardos formaram a maioria da população em vários locais. Se eles se rebelassem, não haveria força suficiente para resistir. E disposição para rebeliões havia.
Paranoia
Dois clássicos episódios de revoltas de escravos contribuem para dimensionar a paranoia que emergia entre os proprietários de escravos ante a cogitada perda de controle da situação.
O primeiro aconteceu como uma espécie de 11 de setembro registrado no Haiti no início dos anos 1800. Uma revolta escrava banhou a ilha de sangue. A partir dali, todos os proprietários de escravos nas Américas entraram em estado de terror ante a possibilidade de virem a ser as futuras vítimas.
O segundo episódio data de 1835. Para piorar o clima, aconteceu na Bahia, a chamada Revolta dos Malês. Tudo porque entre muitos dos escravos baianos havia muçulmanos negros. Para o Brasil eles haviam sido trazidos civilizados, alfabetizados, conhecedores e seguidores de leis e prontos para a guerra.
Não deu outra. Em questão de tempo aqueles escravos organizaram-se para guerrear contra seus dominadores. Antes que isso acontecesse, o movimento foi debelado.
Nas apurações seqüentes foram localizados documentos redigidos em árabe pelos chamados malês. Conforme os registros, o objetivo da revolta era matar todos os brancos, indistintamente.
A divulgação dos termos da conspiração ativou a paranoia dos brancos. A imagem do negro passou a corresponder à idéia de inimigo mortal. A permanente preocupação de que negros venham a se organizar sem o devido monitoramento por um branco e de tê-los como concorrentes advêm dessas raízes.
O Código Penal de 1831 que já instituía oficialmente o racismo por criminalizar a cultura negra se desdobrou no drástico Código Criminal de 1835. Ano da Revolta dos Malês. Danças de candomblé, capoeira, reuniões de negros ganharam renovadas perseguições. Sons de tambores passaram a ecoar insegurança.
Os fazendeiros também não confiavam nos imigrantes europeus porque eles chegavam alfabetizados e conhecedores de seus direitos. O que reforçou o traço do pensamento conservador do interior paulista.
Política
Se nos Estados Unidos os sulistas escravocratas responderam à Abolição com a Guerra Civil, no Brasil os sulistas derrubaram o Império nacional. A seguir, o espírito de golpismo dominou a República ao longo de décadas. Não é à toa a atualidade do termo “golpe” alegado por Dilma por seu impedimento.
Os republicanos proclamaram o novo regime em retaliação ao fato do Império haver libertado seus escravos sem ao menos indenizá-los pelo capital perdido. Feita a República, o regime instituído pelos fazendeiros custou rios de sangue e dinheiro para o povo brasileiro, cristalizando a distância entre a sociedade civil e o Estado e sedimentando os vícios adquiridos durante a tensão abolicionista.
A oligarquia paulista só iria ser apeada do poder em 1930, por Getúlio Vargas. Dois anos depois tentaria retaliação pela perda de poder e pela instituição das leis trabalhistas, deflagrando então uma guerra civil. Sem sucesso. O distanciamento da economia política nacional em relação aos países desenvolvidos supriu o País do sentimento de fatalismo, segundo o qual o fracasso não tem causa, simplesmente acontece.
Na República
Logo quando instalaram o novo regime, em 1889, os fazendeiros recrudesceram a proibição da cultura negra na reforma do Código Penal de 1891. O ministro da Justiça era Campos Salles, de família ruralista em Rio Claro. A manifestação da religiosidade dos negros, suas danças em público, música e festas seguiam perseguidas.
A criminalização da cultura negra subsistiu até a Constituição de 1945 na claudicante democratização do País. Em 1951 o racismo passou a ser penalizado pela Lei Afonso Arinos.
A democracia cultural foi finalmente consolidada pela Constituição de 1988 e seqüente legislação infraconstitucional que amplia a penalização para crimes de discriminação religiosa, racial e outras.
A Abolição, por si, já é conhecida como fraude. Após trezentos anos de escravidão os negros foram alijados do sistema. Na falta de projeto para inclusão social, a exclusão foi total. Os fazendeiros acabaram recorrendo à imigração branca.
O debate sobre a indenização dos negros nunca foi aceito no País. Algo nesse sentido fora proposto muito anteriormente por José Bonifácio de Andrada e Silva durante a fracassada Constituinte de 1824, sob o clima da Independência (1822). Em forma de projeto de lei, o texto com a proposta nem chegou a ser discutido no Congresso.
A discriminação à cultura de matriz africana, oficializada nos séculos XIX e XX , preserva às atuais gerações traços da fragilidade moral do último país a repudiar a escravidão.
Neste quadro, a busca por integração cultural torna-se instrumento de resistência à redução das pessoas à condição estatística de uma sociedade de massa cega e manipulável.
Leitura sugerida
– A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista, Sidney Chalhoub, Companhia da Letras, 2012.
– Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África, Manuela Carneiro da Cunha, Companhia das Letras, 2012.
– Uma breve história do Brasil, Mary Del Priore e Renato Venancio, Planeta, 2010.
– Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura 1820-1920, Warren Dean, Paz e Terra, 1977.
Por J.R.Sant´Ana/Fotos: Divulgação/Foto de Capa: Montagem de Cesar Augusto Teixeira