A cultura nacional insiste no estigma de ensinar que os negros são descendentes de escravos. A afirmativa é falsa. Não passa de um jogo.
Aparentemente isenta e objetiva, a afirmação oculta uma trama de palavras vinda de uma tradição racista e movida por interesses políticos.
Interesses
O interesse da tradição é perpetuar no imaginário popular que o desempenho cultural da descendência africana é frágil. Precisa de concessões.
O interesse político é o de afetar a autoestima do eleitorado negro para mantê-lo sobre controle por meio de uma propaganda ideológica e populista. Reflui-se o orgulho étnico para monitorá-lo.
Eleitoral
As duas manipulações exploram as populações negras em sua fragilidade e ressentimento para delas recolher votos nas urnas eleitorais. A cooptação é articulada sob o argumento da concessão de políticas a fragilizados socialmente. Como a oferta de concessão prejudica a autoestima, o ciclo se mantém. O problema afeta o país inteiro por suas consequências econômicas e sociais.
Trabalho
A manutenção do estigma sustenta a desvalorização da mão de obra negra no mercado de trabalho por falta de estratégias isentas para a superação do ciclo vicioso que abate a desenvoltura do moral das novas gerações negras, que ficam limitadas ao papel de contribuintes alienados em uma a sociedade de mercado pouco republicana.
Raízes profundas
O simbolismo dessa discriminação para justificar a tutela dos chamados descendentes de escravos tem raízes profundas. Sua origem está no medo que os brancos sempre tiveram dos negros desde há muito tempo.
Lá no começo do problema, durante a escravidão, em muitos centros do país a população negra chegava a ser maior que a de brancos, ou próximo a isso. O temor de perda de controle social por eventuais casos de rebeliões era constante. A literatura sobre o assunto é vasta.
Medo
A preocupação com a segurança nacional só foi resolvida com os investimentos oficiais na imigração branca. Em seguida veio a política de miscigenação progressiva para se tentar o embranquecimento da população. A população negra deveria ser reduzida. Vestígios do antigo medo, no entanto, sobreviveram, tanto no imaginário como pelas atuais estatísticas de segurança.
Pedagogia da cumplicidade
Olho vivo. Em manipulações tóxicas de livros didáticos, de teses acadêmicas, discursos políticos, estatutos afirmativos, entretenimentos populistas e no imaginário geral, há que ser ver. Constatar. E, de preferência, denunciar. O quê?
Por que a diferença?
Alguém já viu qualquer judeu dizer que, ele judeu, é descendente de escravo e que hoje sofre discriminação por esse motivo? É óbvio que não. Muito pelo contrário, a escravidão sofrida pelos judeus lhes é motivo de honra pela superação.
Agora, você já viu algum brasileiro dizer que os negros são descendentes de escravos? Sim. Todos dizem isso, em meio a descaso ou com algum constrangimento temperado em velada culpa. Que foram escravos, foram! Tem-se como certeza.
A comparação vale a ser conferida, no aspecto moral, desconsiderando-se demais contextos ou determinismos.
Judeus
Os judeus foram utilizados como escravos no Egito por 430 anos. Sem contar outros 70 anos de confinamento na Babilônia. Só que, no entanto, e principalmente, os judeus de hoje se identificam como pessoas originárias de um povo livre, cujas raízes são anteriores à escravidão. É universalmente admitido que apenas um limitado período da trajetória do povo judeu não macula sua original liberdade.
Negros
Tal entendimento, de liberdade original, é negado aos negros africanos que por trezentos anos foram utilizados como escravos nas Américas. A referência ao que se limitou a um momento já transcorrido lhes foi extraída. O passado ainda lhes é uma sombra que se projeta a cada passo para frente. As sequelas persistem.
Os livros escolares mantêm a negritude na senzala como se tal admissão compensasse a injustiça. Nada falam dos milênios da liberdade original dos negros e de seus méritos pela conquista da Abolição. Por pura ideologia populista virou moda negar que a Abolição foi uma brava conquista dos escravos, o que equivale negar a história e o abolicionismo com a participação dos brancos. Nada falam também dos sucessos da negritude conseguidos a partir dali.
Humanismo capenga
O conhecimento disponível sobre a presença negra no Brasil começa com o navio negreiro deixando a África. De antes não se fala nada. Pelo que se deixa sugerir, parece que os negros já nasceram escravos. Ignora-se que a humanidade é original da África livre há milhões de anos.
O negacionismo do estado de natureza dos povos africanos antes do navio negreiro inviabiliza conhecer o negro desde os tempos bárbaros a ele atribuídos e as civilizações que lhe eram próprias. Assim, desidrata a compreensão de construções e episódios guerreiros de uma África multicultural, berço do Egito, início da civilização mundial. O Egito já era esplendor civilizatório quando os gregos ainda moravam em choupanas. Os romanos nem existiam. Sem falar ainda de Cartago, Aníbal, dinastias, da riqueza e do requinte da civilização muçulmana.
Daí a pergunta: por que apagar a ancestralidade dos povos negros e pensar o africano apenas como escravo por causa de breve período de trezentos anos numa trajetória de milênios? Não parece haver inocência em tal negacionismo. Sugere, sim, prevalência de ideologia com algum tipo de interesse. Medo. Populismo para curral eleitoral. Explora-se a estética degradante. É o caso dos museus.
Explicação que falta
A quem se apressar a refutar a comparação entre uma escravidão e outra, cabe notar que, apesar da distância no tempo, consumimos muito mais informações sobre a escravidão dos judeus do que da escravidão negra no Brasil. Não obstante a primeira datar de 3500 anos e a nossa haver terminado há apenas 132 anos.
Esperança
Alguma resposta parece surgir no horizonte com propostas de se incluir a história das civilizações africanas nos currículos escolares.
Mas a cautela leva a questionar o que se tem para isso.
O Estado teria isenção para construir os conteúdos que ainda não existem, livre de manipulação ideológica populista? Quando nem se pode contar com eficiência para o ensino da misteriosa língua portuguesa ou das coisas do nosso próprio país, o mesmo que insiste em dizer que negros são descendentes de escravos.
Por J. R. Sant´Ana / Foto: Divulgação