A música que tocava no rádio não lhe signifi cava absolutamente nada. Eram quase 6 horas da tarde. Não gostava nem um pouco do horário entre 6 da tarde e 7 da noite. As piores coisas de sua vida aconteceram nesse horário. Foi nesse horário que a mãe morreu. O pai, fora um pouco depois, por volta de 7 e 15 da noite. Horário besta esse pra morrer. Todo mundo preocupado com a janta, e algumas pessoas pensando em morrer.
Aqueles eram dias nada fáceis. As pessoas eram obrigadas a ficar em casa. Trabalhar em casa. Comer em casa. Passar mal em casa. E amar em casa. Hábitos que haviam caído em desuso naqueles últimos tempos, quando a vida se tornara ainda mais corrida, ainda mais exigente, ainda mais apertada. E o que sobrava da vida? Instantes, minutos de satisfação, por alguma vitória, alguma conquista efêmera, que talvez pudesse ser, por exemplo, uma grana a mais no pagamento do mês, um aperto de mão do chefe, um convite pra jantar com a cobiçada colega de trabalho que, enfim, recebera sua merecida promoção.
Agora, contudo, nada disso parecia ter importância. A saudade ocupava um espaço além do conveniente na mente e no coração das pessoas. Saudade de caminhar pelas ruas, de sentar-se no banco da praça nas manhãs de domingo para ler um livro enquanto outras pessoas entram e saem da igreja, algumas apressadas, outras desatentas.
Saudade de bater o cartão ao chegar na empresa para mais um dia de trabalho. Saudade dos companheiros de trabalho, das reuniões cansativas, infrutíferas, modorrentas, onde tudo se anotava, resultado de conclusões que iam se modificando nas horas seguintes, e metas estabelecidas jamais alcançadas. Mas tudo parecia perder importância já no dia seguinte, quando os problemas eram outros, e exigiam outro tipo de preocupação e a busca por outras soluções.
As manhãs, agora, demoravam a passar. Descobrira o prazer de alimentar os pássaros com farelos de pão e bolacha. Voltara a falar com Deus. A agradecer por mais um dia, pela noite bem dormida, pela roupa que cobria a nudez, pelo café da manhã que não lhe faltava, ainda. Passara a olhar todas as manhãs na direção do sol para agradecê-lo. Bendito sol! Querido companheiro, que alegrava o dia com sua luz divinal. Percebia agora com admiração as cores da natureza, o gorjeio dos pássaros, alguns nas árvores, outros nas fiações dos postes. Mas, todos eles, parecendo dar bom dia à vida que recomeçava.
À tarde, dividia o tempo entre a leitura e a escrita. A leitura ia muito bem. Reaprendera o caminho para um mundo além deste, para onde a leitura nos leva. Enfim, pudera se ocupar dos livros adormecidos na estante havia muito tempo. A escrita, nem tanto. Continuava a lutar bravamente com suas limitações. Almejava muito e obtinha bem pouco. Seu nível de exigência não lhe permitia dar-se por satisfeito. O problema é que não chegava a lugar algum, embora visse o lugar desejado, como o viajante sedento em pleno deserto vê a imagem de um oásis ao longe.
E a noite vem. Mais uma batalha vencida. Sobrevivera mais um dia. Convivendo com a solidão, interrompida pela visita inesperada da filha com a namorada. A filha cujo nome significava vida em abundância, a filha que tinha sempre um sorriso e um olhar meigo a lhe oferecer. A filha forte, destemida pra enfrentar a incapacidade das pessoas para entender o óbvio: o amor tem muitas faces, todas elas agradáveis a Deus, desde que seja amor.
Iria recolher-se aos seus aposentos naquela noite, um tanto mais feliz. A companhia da filha querida sempre lhe fizera muito bem. Talvez apanhasse o seu velho caderno de notas, onde, então, escreveria as reminiscências daquele dia. Entre lembranças e aspirações, o que chegaria ao papel de modo mais contundente e verdadeiro? Não sabia.
Sentou-se na cadeira e, enquanto descascava laranjas, após comer um lanche, lembrou-se de quem fazia a sua alma sorrir. Era a mesma pessoa que, quando lhe abraçava, aquele abraço forte, gostoso, generoso de 8 segundos, o tornava, ao menos durante 8 segundos, a pessoa mais feliz do mundo. Onde estaria agora essa pessoa? Talvez a encontrasse novamente nos seus sonhos, durante a noite. E talvez, como no mais bonito dos sonhos, caminhasse com ela, de mãos dadas por um jardim. Ao lado dela, encontrava a desejada paz. Era o bastante para fazê-lo sentir-se feliz e realizado.