Políticos temiam ali serem malhados como Judas no Sábado de Aleluia – Mário teria acertado na loteria e iria fugir com a Cida para a França – Esquinista não mentia. A verdade é que era elástica – Os infiltrados na imprensa – Problema de fechar o bar é que o pessoal iria se disseminar pela cidade; menos pior seria mantê- -los juntos onde pudessem ser vigiados – Por que o nome Esquina do Veneno? – Como tudo começou e terminou? – Leia aqui – Acredite se quiser.
O assunto
O bar e café Esquina do Veneno, na Avenida 1 com a Rua 5, encerrou suas atividades há oito anos. O fim aconteceu em 14 de julho, dia da Queda da Bastilha [?]. Até hoje, um mundo de fantasias povoa a memória de seus ex-frequentadores e inúmeros obituários. Ali a fofoca era cultura, conforme a história que segue.
Raízes profundas
Em 1886, o eixo da movimentação urbana de Rio Claro já se localizava na confluência da Avenida 1 com a Rua Cinco. As ruas deixavam de ter nomes para ganhar numeração. A área central limitava-se a menos de oitenta quadras.
Logo de início o local tornou-se costumeiro para os rápidos encontros do dia a dia, para contatos de negócios e, em especial, para atualizações e versões sobre a vida pública e privada. Ou fofoca.
No tempo
Com o passar dos tempos, a tradição ali localizaria a famigerada Esquina do Veneno. Um ponto de convivência. Ou, conforme a má língua de seus refratários, um templo de mexericos.
As referências do bar sempre foram seu saboroso cafezinho passado no coador de pano, o pastel crocante e o salgadinho frito na hora. Sem contar o pão à passarinho (cortado em quadradinhos). Alguns buscavam croquete quente.
Últimos momentos
A desativação do bar e café, às 14h30 de um sábado, deixou para trás uma história lendária. A última badalação para a despedida se deu com muito samba, regado à cerveja e alegria. Nem poderia ser diferente. Mário, o dono, estava visivelmente emocionado. Cida, a dona, preferiu evitar a emoção do último momento.
As línguas dos presentes estiveram invariavelmente afiadas. Em meio à derradeira comoção, muita coisa se falou sobre quais seriam os motivos do fechamento do bar. Os reais e os imaginários.
A fofoca final
A alegada explicação da aposentadoria do Mário e a transferência do ponto para outra atividade comercial era vista sob suspeita. Ninguém tocava no assunto abertamente.
Para alguns, a verdade era que o Mário teria acertado na loteria e, por questões de segurança, não queria alarde sobre estar milionário. A partir de então, queria sossego. Preparava-se para esquecer tudo o que ouvira e deixar o País com a Cida.
O dinheiro já estaria depositado na França, para onde iriam se mudar com as filhas e viverem nababescamente. Até teriam escolhido o dia 14 de julho, data da Revolução Francesa, para que não faltasse simbólica alusão à França no fechamento do bar.
Voilá
A ideia de ir para a França teria vindo por inspiração na Torre Eiffel lá no Lago Azul. Paris e Rio Claro são cidades irmãs pela luz elétrica, o que explica o monumento local. O Mário e Cida adorariam a Torre Eiffel de Rio Claro. Sempre que podem ainda vão lá dar uma olhada, sobretudo à noite, quando a réplica fica toda iluminada.
Entre outras evidências que levariam à rota francesa estaria o fato de muitos terem visto a Cida, bem ali atrás do balcão do canto, por diversas vezes, movendo os lábios e fazendo biquinho, esforçando-se discretamente a conferir uma apostila cujo título era “Francês para Principiantes”.
Ela, sorrateiramente, era observada por dissimulados e atentos olhares, ávidos em querer saber o que moveria tal interesse. Sobre isso ainda iria rolar muita coisa. Alguns achavam que era só fofoca, mas não necessariamente mentira.
Como tudo começou A origem da Esquina do Veneno como ponto de encontro dos intérpretes da verdade se perde na névoa dos tempos. Nada mais remoto. O maior arquétipo de sua antiguidade estaria na Serpente, exibida em sua logomarca. Seria um sinal secreto de que as raízes da Esquina do Veneno e as do mundo coincidiriam. Com Adão e Eva.
Fontes obscuras atribuem os primeiros vestígios de pessoas bem informadas no local a misteriosos descendentes das tribos perdidas de Israel, de séculos após a primeira diáspora.
Conforme relatos, aqueles migrantes teriam ensinado gratuitamente os aos nativos e agregados a arte das vendas, fazer troco e como emprestar dinheiro a juro e receber em dia. Estavam lançadas as bases para a gênese do antigo comércio da Avenida 1 e da Rua 3.
Os patriarcas
Fatos não reconhecidos pela história tradicional revelariam que os fundadores da cidade, quando aqui chegaram em 1826, teriam feito um pouso na Esquina para descansar da longa incursão.
Ali teriam encontrado uma tenda indígena em que se oferecia saborosa infusão, tipo um chá (depois café), para ser apreciada com um salgadinho feito de palmito. Este seria o autêntico precursor do pastel. Em Rio Claro e região não havia gado. Só muito mais tarde foi possível fazer pasteis de carne e de queijo. Mais recentemente, de chocolate.
Os fundadores da cidade, então, se impressionaram com o quitute saboreado e resolveram adotar a palmeira indaiá, fornecedora do bom palmito, como símbolo da nova cidade. O município passou a ser conhecido como Terra dos Indaiás. Estranheza dos patriarcas ficou por conta de notar o costume de indígenas e bandeirantes da vizinhança em discutir no local a vida alheia em tom de pilhéria.
O hábito acabou sendo adotado pelos pioneiros, com certa polidez, sob um verniz social mais compatível à sua cultura. Eles acrescentaram uma dimensão culta à prática ao associá-la à política. Da prática, surgiu a misteriosa Sociedade do Bem Comum, reunião dos donos da cidade com o intuito de trocar informações, partilhar segredos, exercer o poder e vencer o tédio falando da vida alheia.
Precioso líquido
Como não havia café na época, o pessoal só bebia cachaça, para condenação do primeiro padre, que, ignorado, insistia em dizer “gente, isso é um veneno”. O padre só tomava vinho.
O hábito de tomar o alegado veneno de cana justificaria uma das versões sobre o nome da Esquina. Outra diz que o nominado veneno seria a fofoca em si, literalmente.
A Esquina do Veneno ficava a uma quadra da Sociedade do Bem Comum. A tenda indígena do local, passados os anos, já evoluíra para uma choupana meio de alvenaria. Os adeptos se multiplicavam.
O comércio, então, se difundia pelo centro. Na verdade, o centro era única base social que existia da cidade. Os lojistas já sabiam fazer troco. Alguns roubavam na balança. Quem emprestava dinheiro a juro ficava sentado em algum banco do futuro jardim, que estava em formação, por isso aqueles uns eram chamados de banqueiros.
Conforme registros reconhecidos, de um século depois, a Esquina consolidou-se como ponto de encontro. Evoluiu. A cidade se urbanizou. Ganhou luz elétrica, que os visitantes achavam um absurdo, pelo gasto desnecessário. Na época não se falava em dízimo sobre gastos públicos.
A farmácia e seus males
No local acabou sendo instalada uma farmácia. Era o começo da década de 1930. A ideia de farmácia pode ser facilmente vinculada a mexericos e boatos, uma vez que em momentos de saúde frágil, sob a dependência de remédios, as pessoas costumam a acreditar em qualquer coisa. Isto é um fato antropológico. Mentira bem aplicada pode ser um bálsamo, ter efeito antidepressivo, relaxante, calmante.
Os esquinistas da fase farmacêutica foram José Gonçalves Canello, Thomaz Macha, Rafael Raya, Raxd Badin, Francisco Cartolano, Antonio Gonzales, Abdala Bedran, Alfredo Karam, Névio Timoni, Hildebrando de Carvalho e Nicolino Mazziotti.
Isto só para listar os responsáveis pela tradição. Sem que isso soe como acusação. Mesmo porque, ainda é difícil encontrar provas concretas de tais participações. Tudo o que se tem hoje são vagos comentários, insinuações, poucas digitais, vultos em fotos desfocadas, vestígios circunstanciais e falsos testemunhos. De oficial não há nada.
Atualidade
A contar a atualidade, a última geração do bar e café, em uma manobra ideológica, cuidou de elevar seus mexericos à categoria do “politicamente correto”. Assim, a fofoca ganhou status de cultura.
Ao atraírem para o grupo formadores de opinião, venceram resistências e conseguiram se infiltrar na imprensa. Paradoxalmente, este bem sucedido processo de metamorfose marcou o último momento dos mexericos no local. Ou seja, a fofoca se esvaziou quando foi reconhecida como cultura.
Alegações
Segundo os últimos frequentadores, eles na atualidade apenas exerceriam a prática de informação e contrainformação em tempos de liberdade de expressão e de direitos civis. Tudo isso, eticamente, sem as eventuais maledicências que poderiam ter movido a língua de seus antecessores.
Para eles, qualquer maledicência que possa haver ocorrido no passado seria facilmente explicada pelo fervor libertário próprio de tempos das ditaduras. A comunicação de boca a boca, não obstante falível e precária, era a única forma de expressão confiável devido à censura aos meios de comunicação.
Seja como for, não há registro de injúria, calúnia ou difamação a partir da Esquina do Veneno. Não há evidência de que os documentos provando o contrário tenham sido queimados. Os esquinistas sempre estiveram enfronhados na máquina pública.
Conforme passou a prevalecer, até a extinção, os esquinistas de todos os tempos teriam prestado um serviço desinteressado à democracia em consonância com a promoção dos direitos da pessoa.
Ao final, traduzindo, os esquinistas da última geração conseguiram transformar o estigma da fofoca em motivo de orgulho cívico, o que revela bem sucedida retórica, atividade ali cultuada desde a origem dos tempos.
Civismo
Os mais assíduos frequentadores da Esquina passaram a ser vistos como exemplo de fraternidade por praticarem a ajuda mútua e, eventualmente, participarem de campanhas filantrópicas.
Em Rio Claro, a campanha Dê Ouro para o Bem do Brasil foi promovida na Esquina do Veneno. O escoamento da riqueza local chegou a ser associado à polêmica do cofre de Adhemar de Barros, governador na época. O mesmo cofre que dizem ter sido roubado pela Dilma.
Os vitalícios do ponto chegaram a ser identificados por carteirinha instituída pelo Armando Meira. A foto três por quatro no documento trazia a imagem do usuário de frente e verso, com rosto de frente e a cabeça vista por trás. Tudo para não deixar dúvidas e evitar que elementos não credenciados comprometessem o considerado nome da confraria.
Instituições
Em 1985 os frequentadores do café montaram uma quase escola de samba, a concorrida Banda do Veneno. Ela tende a sobreviver ao fechamento do bar. O Arquivo Municipal dispõe de registros das muitas peripécias da Banda do Veneno ao longo de sua existência, seus sambas, fotos e documentos diversos encontram-se preservados.
Esquinistas mais organizados mantêm um arquivo próprio e secreto que deve estar na casa do Miltinho. Mais que conteúdos para uma cápsula do tempo, o acervo é reverenciado e mantido em segurança para preservar às futuras gerações a memória da espécie como exemplo de cidadania.
A banda surgiu como reação à transferência do desfile de carnaval das ruas centrais para a Avenida Visconde. Tem, portanto, o apelo saudosista dos Tempos Dourados, o que explica sua áurea e frustrada expectativa de reconhecimento internacional pela UNESCO.
Midiática
A Esquina do Veneno ganhou farta cobertura de cronistas que registram um pouco de sua história e o talento, a inteligência e o bom gosto de seus frequentadores.
O grande cronista da instituição foi Alcides Beato, presidente vitalício da entidade cultural formada. Ele mantinha coluna assinada no Jornal Cidade, já levando adiante sofisticada estratégia de fazer fofoca por escrito e em escala industrial.
A coluna em jornal marcou o apogeu do incontestável poder de Beato, que não se incomodava de ter seu sobrenome vinculado a boato.
Apesar do elevado grau de politização republicana dos esquinistas, nunca houve tentativa de golpe para depor Beato durante seu ininterrupto exercício de poder.
Observadores críticos da falta de alternância no comando da confraria chegaram a nela apontar uma veia monarquista, sugestão prontamente rechaçada pelos formadores de opinião, por isso condenada ao ostracismo. Não obstante a militância de René Neubauer. Parece que a Marizilda tem alguma coisa a ver com isso.
Antonio Sérgio Piton, Raya Júnior, Helmut Troppmair, Sérgio Carnevale, Vicente Pavão, Udy, Lígia Karam, Moacir Martins, Afonso Baldissera, Marcus Vinícius, Jane e Noriel , Sérgio Santoro (só para citar os que não têm álibi) produziram crônicas e comentários sobre a vida e a obra dos frequentadores. O Sant´Ana era o assessor de imprensa do grupo, nomeado pelo Zé Afonso.
Mundo acadêmico
A socióloga da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, Neusa Costa Davids, analisou o fenômeno da Esquina em tese nos anos 1960.
Em sua pesquisa, observou a então chamada fofoca local. Sobre aqueles por ela chamados de “fofoqueiros” (termo sob suspeita de não sugerir elogio), a cientista considerou “serem influentes na medida exata da força de difusão de seus mexericos”.
Com a referência deu-se o ingresso da memória da Esquina nas lides da vida acadêmica e sua exposição como instância de poder informal.
Políticos e celebridades
Nenhum espaço privado e poucos locais públicos conseguiram registrar em Rio Claro a presença de políticos e celebridades de expressão nacional como a Esquina do Veneno.
Ali estiveram Lula, FHC, Jânio Quadros, Ulysses Guimarães, Mário Covas, Paulo Maluf, Antonio Ermírio de Moraes, Plínio de Arruda Sampaio e Ronaldo Caiado. Collor passou pela cidade e não visitou a Esquina. Deu-se mal.
Na galeria de celebridades que saborearam o café entre esquinistas estiveram Elisete Cardoso, os integrantes do Roupa Nova, João Ricardo, do Seco e Molhados, César Camargo Mariano, Chiquinho Scarpa, o maestro Zézinho e Frank Aguiar. Chico Buarque de Holanda circulou pelo local sem chegar a tomar o café. Tomou no restaurante vizinho, o antigo Roma. Até um cacique, o alagoano Manoel Arcanjo, foi frequentador entre as décadas de 1970 a 1990. Ao lado do cineasta Palmari estiveram José Lewgoy, Vanda Cosmo, Jofre Soares, Othon Bastos, além do Fubá.
Diante de tanta fama, a imprensa nacional ocupou-se de registrar a cultura esquinista. Sem contar que a Esquina era fraterna ao famoso bar Boca Maldita, de Curitiba. Frequentadores de um e outro trocavam correspondência.
De Rio Claro para o mundo, a Esquina ganhou cobertura do Jornal Nacional, Folha de São Paulo, redes Manchete e Bandeirantes, Correio Popular e EPTV.
Certa frustração ficou por conta do Fantástico, que agendou matéria com Fúlvio Abramo para 10 de fevereiro de 1995, mas não compareceu. Durante muito tempo o índice de audiência do programa na cidade foi negativo.
Os políticos locais passaram a cuidar melhor de suas relações com os esquinistas a partir de 1985, quando foi iniciada a tradição de malhar o Judas bem ali na frente. Era época de abertura do regime, de entusiasmo democrático e voto de confiança à política. A empolgação levou ao costume de atribuir o nome de algum detentor de mandado ao boneco a ser malhado.
Os políticos mais visados de cada ano tratavam de passar pelo local antes das sete da manhã do Sábado de Aleluia para conferir se desta vez seria ele o malhado. Quando era, a resignação recomendava passar o dia em casa, para desconforto da esposa, filhos e vizinhos. Quando não era o malhado da vez, tinha-se um alívio.
Vereadores
A Esquina sempre foi um ponto disputado para sustentar a popularidade de candidatos a vereador. Alguns, depois de eleitos, deixavam de frequentar o local até a próxima eleição sob a alegação de que o exercício do poder implica invariavelmente em desgaste de imagem. Justificativa ironizada pela argúcia dos esquinistas.
Os renegados, porém, depois de algum tempo, voltavam com olhos de perdão, arriscando uma distribuição de santinhos sob a atenção amiga daqueles tão conhecedores das fraquezas humanas. O bar sempre contou com fiéis que, independente de serem eleitos ou não, mantinham a frequência.
No fim
O samba de despedida naquele sábado, 14 de julho, balançou corações. Foi feito um livro de assinaturas para despedida. Du Altimari e Cláudio de Mauro o assinaram.
Ao final de tudo, restou a vida de cada um. Nua e crua. Sem véu. As viúvas da Esquina ainda circulam à espreita do que não sabem. O espírito do mexerico procura se encontrar. O último pastel ninguém esquece.
Epílogo
Se o tempo da Esquina foi o melhor ou pior, se seu fechamento teve algum significado, ninguém sabe dizer. A única certeza é que jamais haverá alguma coisa igual. A saudade, por sua vez, não depende de certezas. Ela apenas existe.
Ao imaginário das futuras gerações reserva-se esta fofoca retrospectiva. Outras versões certamente serão disseminadas. A fofoca não para. Sem a Esquina do Veneno, o espírito dos mexericos passou a estar em toda parte e em lugar nenhum. Há quem diga que é ao contrário.
Por J.R. Sant´Ana / Foto: Divulgação